O inciso II do §1º do artigo 176 da LRP trata dos elementos essenciais da matrícula, que são: 1) número da matrícula; 2) data de sua abertura; 3) descrição do imóvel (especialidade objetiva); 4) qualificação pessoal dos proprietários (especialidade subjetiva); e 5) referência ao registro anterior. Nesse §1º do artigo 176, a especialidade objetiva é determinada de forma genérica, pelos vocábulos “identificação do imóvel”, “características”, “confrontações”, “localização” e “área”. Diante disso, surge a grande questão: como deve ser descrito um imóvel?
Alguns registradores têm entendido que a lei não exige a utilização de ângulos (azimutes ou rumos) para descrever o imóvel (pois expressamente exige apenas “características”), o que permitiria, por exemplo, o uso da seguinte descrição para um lote urbano: “Matrícula 2.788: 10 metros de frente para a rua, 20 metros do lado esquerdo, 20 metros do lado direito e 10 metros nos fundos”.
Basta conhecer um pouco de geometria para saber que a simples indicação das medidas dos quatro lados do imóvel não são suficientes para determinar seu formato. Na figura seguinte são apresentadas apenas três das várias possibilidades de formatação do imóvel que obedecem a precária descrição constante da matrícula 2.788:
Exemplo 1 de precariedade da descrição.
Uma descrição que faz referência a um imóvel de formato parcialmente retangular, com 10 metros de frente e a área de 200 m², também não cumpre o princípio da especialidade objetiva, pois diversas são as possibilidades de formatos que cumprem essa precária descrição tabular. Exemplo: “Matrícula 8.127: um lote de 10 metros de frente para a alameda, com profundidade média de 20 metros, fechando uma área de 200 m².”
Exemplo 2 de precariedade da descrição.
A perfeita indicação das distâncias dos quatro lados e da área total, sem a determinação dos ângulos (azimutes, rumos ou ângulos internos), também não cumpre o princípio da especialidade objetiva, pois a descrição tabular é insuficiente para que se determine o real formato do imóvel. Exemplo: “Matrícula 10.904: 10 metros de frente para a rua, 20 metros do lado esquerdo, 15 metros do lado direito e 10 metros nos fundos, fechando uma área de 161 m².”
Exemplo 3 de precariedade da descrição
Pelos exemplos apresentados, fica patente que a descrição que não especializa o imóvel é precária e não cumpre o princípio da especialidade objetiva. A descrição técnica deve ser suficiente para possibilitar que qualquer pessoa, conhecedora das regras de geometria, consiga obter (com ou sem o auxílio de softwares de cálculo e de desenho técnico) exatamente o mesmo desenho do imóvel, sem que ela conheça o imóvel, por planta, imagem ou “in loco”.
Considerando que a LRP não exige nada além de “características”, como, então, deve ser descrito um imóvel?
Para encontrar a resposta, há que se ter em mente que o Direito é uma das ciências do conhecimento humano que deve se harmonizar com as demais. Por ser uma ciência social aplicada ao dia-a-dia das pessoas, suas regras não são estanques nem tampouco ignoram o mundo existente ao seu redor. Sendo assim, todo vocábulo utilizado por uma norma jurídica deverá ser interpretado conforme o conceito determinado pela ciência do conhecimento do qual ele faça parte, exceto nas hipóteses em que a lei traga uma regra específica restringindo ou expandindo o conceito típico, ou mesmo criando um conceito totalmente diverso da definição original. Portanto, diante de um vocábulo que possua um conceito típico de outra ciência, há três possibilidades: a adoção plena, a adoção parcial e a não-adoção do seu conceito original.
Exemplos: 1) adoção plena: a morte de uma pessoa, que resulta na abertura da sucessão e na automática transmissão de seu patrimônio aos herdeiros, deve ser confirmada segundo a ótica da Medicina, ou seja, neste caso específico, o direito civil adota plenamente o conceito de morte definido por outra ciência; 2) adoção parcial: o artigo 327 do Código Penal, ao definir funcionário público para fins penais, amplia o conceito do direito administrativo, incluindo outras pessoas não abrangidas pela regra geral; e 3) não-adoção: a lei presume (“iure et de iure”) a absoluta incapacidade do menor impúbere, independentemente do grau de desenvolvimento de seu intelecto, ou seja, neste caso específico, não se adota o conceito de capacidade intelectual da Psicologia.
Tanto a não-adoção como a adoção parcial do conceito científico de um vocábulo somente serão aplicadas se a lei expressamente determinar essa modificação. Na falta de disposição em contrário, prevalece a completa adoção do conceito tipificado pela ciência do conhecimento do qual o vocábulo faz parte.
A LRP utilizou os vocábulos “identificação do imóvel”, “características”, “confrontações”, “localização” e “área”, vocábulos estes que, em seu conjunto, significam “descrição do imóvel”. Descrever imóvel é uma atividade bastante antiga e é objeto de estudo de outra ciência: a Agrimensura. Portanto, é naquela ciência que se deverá buscar a forma correta de descrever um imóvel, ou seja, a descrição imobiliária deverá ser elaborada por qualquer uma das técnicas de medição de terras reconhecidas pela agrimensura.
No caso de se tratar de imóvel rural, com área não mais abrangida pelo prazo carencial, deverão ser cumpridas as regras do georreferenciamento, nos termos dos §§4º e 5º do artigo 176 e §3º do artigo 225 da LRP, combinados com o Decreto nº 4.449/2002. Nesta hipótese, a lei trouxe regras específicas e bastante rígidas para a medição do imóvel, utilizando uma das técnicas de agrimensura e outras regras modificadoras que são necessárias para a solução do problema fundiário do Brasil (trata-se de adoção parcial, pois restringe a técnica de levantamento ao georreferenciamento pelo sistema UTM; exige prévio credenciamento do profissional legalmente habilitado; e subordina a validade de seu trabalho técnico à certificação do Incra).
Pelo exposto, o princípio da especialidade objetiva somente é cumprido mediante uma descrição técnica elaborada de acordo com as normas gerais da agrimensura, para possibilitar a qualquer especialista a materialização do desenho do imóvel (planta) com base exclusivamente no memorial descritivo.
O lado direito e esquerdo estão corretos? Tenho que me posicionar dentro do terreno e olhando para a rua, à minha direita será a direita do imóvel, à minha esquerda, será a esquerda do imóvel.?
ResponderExcluirexatamente!
Excluirsou agrimensor em fim de carreira kkkkk Quando vamos olhar um imóvel, por acaso nós entramos pelos fundos?___não. Então, sempre nosso lado direito é de como vemos o imóvel, pela frente. Assim que eu descrevo e não precisa mais daquela velha frase "de quem da rua olha". Não posso garantir que todos, mas a maioria das descrições em escritura vem assim.
ExcluirPrezado Rafael,
ResponderExcluirA sua observação é de grande relevância e, parece que os cartórios em geral tem se equivocado na descrição de imóvel, pois o fazem a partir do observador externo e não a partir do objeto, imóvel, descrito, ou seja, invertem os lados, direito e esquerdo. Ao se fazer como habitualmente grande parte dos cartórios fazem, seria como se alguém ao descrever um automóvel, dissesse que o volante fica do lado direito. Ou, ao descrever uma pessoa, dissesse que o coração fica do lado direito do peito.
Portanto, a descrição deve ser feita como você sugere, ou seja, a partir do objeto a ser descrito, no caso de terreno ou imóvel de dentro deste posicionado com o olhar para o logradouro, no caso de um automóvel, idem, no caso de uma pessoa, idem.
Precisamos ter uma norma que acabe com essa história de especificidades subjetivas, acabar com elas em tudo que for possível. E ainda as especificidades objetivas, que sejam ampliadas e ratificadas. Como deixar as regras soltas em assunto tão necessário para a pacificação dos conflitos rurais e urbanos? Como os protagonistas do Estado na resolução dos conflitos vão poder interagirem-se com segurança jurídica se suas regras ainda estão no campo da subjetividade. Hora de mudanças.
ResponderExcluir