quinta-feira, 7 de abril de 2011

Usucapião: identificação dos títulos e dos proprietários anteriores

(manifestação em processo judicial de usucapião; o fato é real, mas os dados aqui apresentados são fictícios)


MM Juiz:

Comunico a V. Exa. que, no tocante ao despacho exarado às fls. 324 desse processo de usucapião requerido por Antonio da Silva, cabe a este serviço registral imobiliário esclarecer alguns pontos importantes.

1.   Análise do título de João Paulo Antunes

Na inicial, que se baseou em um contrato particular em que herdeiros de João Paulo Antunes cederam ao requerente Antonio da Silva um imóvel rural de 8,67 alqueires (21 hectares), argumentou-se que tal área é oriunda do imóvel de Transcrição 10.873, caracterizado por uma “área de terras de aproximadamente 13,5 alqueires ou 32,67 hectares” (fls. 10, in fine). 
Essa afirmação (de que a Família Antunes era titular de uma área de 13,5 alqueires) não está correta, uma vez que, em 1973, conforme averbação nº 1 da Transcrição 10.873 (fls 35), uma parcela de 11,34 alqueires (27,44 ha) foi destacada e alienada a Márcio Proença (Transcrição 17.098). Diante disso, remanesceu para João Paulo Antunes apenas uma pequena parcela de 2,16 alqueires (1/4 da área que esta sendo usucapida).
É público e notório que as medições do passado são pouco confiáveis, sendo até possível que o imóvel tivesse dimensão maior. Para averiguar o grau de divergência entre a dimensão real do imóvel e o valor indicado, sem o risco de incluir área não titulada na forma da lei, deve-se definir a exata localização de todo o imóvel originado pela Transcrição 10.873.
Para que fosse possível a delimitação desse imóvel, foram considerados os dados constantes deste processo, informações de antigas cartas topográficas do IBGE e do IGC, fotos aéreas de 1972 e, principalmente, o teor de antigas transcrições dos imóveis existentes naquela localidade (Bairro Santo Ângelo) e as informações trazidas pelas recentes retificações efetivadas por este serviço registral imobiliário. Tal pesquisa possibilitou determinar e delimitar a área que foi alienada a Márcio Proença e, com base nesse destaque efetivado em 1973, deduzir, com relativa segurança, a área que remanesceu com a família Antunes.
Quando da última manifestação deste Registro (junho de 2007, fls. 124) ainda não estava disponível no Google Earth a imagem de satélite daquela região, o que impedia uma análise mais precisa do presente caso; hoje, com a imagem já disponibilizada na internet e com a realização de várias retificações de imóveis da mesma localidade, há como afirmar, com maior segurança, a situação jurídica dos imóveis localizados no Bairro Santo Ângelo.
A carta topográfica do IGC (Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo), que foi elaborada com base em fotografias aéreas de 1977 (4 anos após a alienação da maior parte do imóvel a Márcio Proença), aponta a exata localização da sede da propriedade de João Paulo Antunes (remanescente da Transcrição 10.873) e da sede da propriedade de Márcio Proença (Transcrição 17.098), esta última localizada do outro lado da estrada municipal, às margens do córrego Água dos Antunes:


Na imagem de satélite extraída do Google Earth, que representa a realidade atual (imagem de 7/10/2010), são visualizadas as sedes das duas propriedades, localizadas exatamente na mesma posição indicada pela carta topográfica do IGC de 1977.


Com base nessas duas informações e em retificações efetivadas em imóveis confrontantes com a parcela alienada a Márcio Proença, foi possível identificar e delimitar todos esses imóveis sobre a mesma imagem de satélite.
Abaixo, a localização exata do antigo imóvel de Transcrição 10.873, formado pela área alienada a Márcio - Transcrição 17.098 (um polígono estreito e comprido do lado esquerdo da estrada, onde se visualiza a “antiga sede da propriedade de Márcio”) e pela área que remanesceu com a família Antunes - remanescente da Transcrição 10.873 (um polígono de forma quadrada onde também se visualiza claramente a “antiga sede da propriedade dos Antunes”).


Com base nessa imagem de satélite e em software Cad, apurou-se a correta dimensão desses imóveis (valores aproximados do real). O resultado da comparação dos dados apurados com os valores indicados no registro foi o seguinte:
  • Transcrição 10.873 (área original registrada): 32,67 ha
  • Transcrição 17.098 (área alienada a Márcio Proença): 27,44 ha; área real: 29,5 ha
  • remanescente da Transcrição 10.873 (pelo registro): 5,23 ha; área real: 10 ha
  • área total pelo registro: 32,67 ha; área total apurada: 39,5 ha
  • divergência calculada na origem do imóvel: 20,9% a maior
Pelo fato de a divergência entre a área registrada (32,67 ha) e a área apurada (39,5 ha), que é de 20,9% a maior, não se afastar muito da faixa que se tem verificado em Conchas nas retificações de antigas transcrições (variação entre 10% e 20%), esta divergência ora verificada deve ser considerada “falha na antiga medição”. Ou seja, não se trata de efetivo aumento de área, mas sim de correção de dado equivocado existente no registro.

Conclusão 1: diante do exposto, o imóvel que remanesceu em favor de João Paulo Antunes, garantido juridicamente pela Transcrição 10.873, é o polígono em destaque na figura anterior, com uma área aproximada de 10 ha.


2.   Relação do título com a área usucapienda

Delimitado o imóvel de João Paulo Antunes, cuja propriedade é garantida pela Transcrição 10.873 deste registro imobiliário, há que se verificar se a área que está sendo usucapida invade ou não os seus domínios.
O imóvel objeto desta ação de usucapião mede 21,07 hectares e, caso se comprove que tenha origem no título de João Paulo Antunes, o título não é suficiente para toda a área, uma vez que, conforme já explicado, a dimensão máxima do remanescente não ultrapassa os 10 ha (menos da metade da área do imóvel usucapiendo).
Considerando que a diferença entre o imóvel usucapiendo e o imóvel titulado é de 11 hectares, restam apenas as seguintes possibilidades no tocante à área usucapienda:
  • engloba integralmente o título: a metade do imóvel usucapiendo fica sem origem;
  • engloba parcialmente o título: mais da metade do imóvel usucapiendo fica sem origem; e
  • não atinge a área titulada: a integralidade do imóvel usucapiendo fica sem origem.
Com base nos trabalhos técnicos georreferenciados apresentados pelo autor (fls. 52), é possível determinar sua exata localização na imagem de satélite do Google Earth:


Delimitados todos os imóveis diretamente envolvidos, bastou plotá-los numa mesma imagem para concluir que não há qualquer sobreposição entre o imóvel usucapiendo (destacado em azul) e o imóvel titulado em nome dos Antunes, ou seja, percebe-se, claramente, que são áreas completamente distintas:


A planta anexada ao contrato efetuado entre os herdeiros de João Paulo Antunes e o requerente (vide fls. 13) indica que a “área negociada” (agora usucapienda) confronta-se, a oeste, com o imóvel de “João Paulo Antunes - remanescente da Transcrição 10.873”, ou seja, os cedentes e cessionário reconhecem expressamente que a Família Albano é titular do imóvel vizinho (remanescente da referida transcrição).
Isso não significa que a Família Antunes não tivesse a posse legítima dessa área, mas tão-somente que o imóvel usucapiendo não é representado pela Transcrição 10.873.
Conclusão 2: diante do exposto, o imóvel usucapiendo não tem nenhuma ligação com a Transcrição 10.873, ou seja, tal área nunca esteve registrada em nome de João Paulo Antunes. O remanescente da Transcrição 10.873 é o imóvel vizinho, que ainda está na posse da Família Antunes e que, para sua regularização, basta a simples retificação extrajudicial de sua descrição tabular para a apuração de seu remanescente seguida do registro do formal de partilha, cuja cópia consta das fls. 15 a 48 deste processo.

3.   Identificação do título afetado pela área usucapienda

A necessidade de se identificar os títulos afetados pelo pedido de usucapião está na obrigatoriedade de se efetivar a citação pessoal de todos os ex-proprietários do imóvel usucapido. A omissão de qualquer ex-titular, cuja identificação seja razoavelmente viável, resulta na ineficácia do reconhecimento judicial de usucapião perante ele. Por esse motivo, é muito importante esgotar todas as possibilidades para a identificação de todos os potenciais prejudicados pela usucapião para evitar futuros dissabores aos requerentes.
Para a identificação dos títulos potencialmente afetados pela área objeto desta ação de usucapião, há inicialmente que se identificar todos os imóveis que confrontam com a referida área e com o imóvel de Transcrição 10.873. 
No entanto, isso não é nada fácil, pois antigamente apenas se indicava o nome dos titulares sem a identificação dos imóveis vizinhos; além disso, era muito comum repetir as “confrontações históricas” nos novos títulos, sem se preocupar com as alterações havidas tanto na titularidade como na formatação dos demais imóveis lindeiros (desmembramentos e fusões mudavam por completo o cenário, mas as descrições normalmente não eram atualizadas).
Feitas as buscas que se mostraram possível, foram identificados, além da estrada municipal, apenas 3 confrontantes históricos, representados pelas matrículas 974 e 7.672.
Para piorar o cenário, o imóvel de matrícula 974 (originalmente com 71,39 ha), após dois destaques facilmente identificados e localizados (totalizando 12,3 ha), acabou reduzido a menos de 2 hectares (dado constatado indiretamente, pois a matrícula continua com 59,09 ha), pelo fato de quase a totalidade de seu remanescente (64,72 ha) ter sido usucapido pelo mesmo requerente desta ação, Antonio da Silva (Processo nº 862/96, da 2ª Vara de Conchas, que resultou na matrícula 11.414). Portanto, surge um novo confrontante, a matrícula 11.414, sem origem declarada (mas comprovadamente originada do imóvel de matrícula 974).
Outro confrontante é o imóvel de matrícula 7.672 (70,48 ha), de descrição tabular muito precária e de histórico de formação bastante complicado, pois a matrícula tem origem em várias transcrições do Registro de Imóveis de Tietê e em outras matrículas deste serviço registral, cujas descrições individualizadas aparentam muitas contradições.
A situação atual dos imóveis localizados nas proximidades da área usucapienda é a apresentada na imagem abaixo:


Considerando que a Transcrição 10.873 não é a origem da área usucapienda, conforme já foi comprovado nos itens anteriores, e que as fazendas públicas já declararam não haver qualquer indício de se tratar de “terra devoluta”, as únicas possibilidades, quanto à origem do imóvel usucapiendo, são as seguintes:
  • parcela do imóvel de matrícula 974;
  • parcela do imóvel de matrícula 7.672;
  • área com título nunca registrado (anterior ao CC/16) ou registrado no RI de Tietê, quer em nome de ascendentes de Antunes (probabilidade remota) ou de quaisquer outras pessoas.
Sendo qualquer uma das duas primeiras hipóteses (parcela da matrícula 974, parcela da 7.672, ou parcela de ambas as matrículas), a citação de seus proprietários tabulares é suficiente para solucionar a questão:
  • no tocante os titulares do imóvel de matrícula 7.672 esse juízo aceitou expressamente a “declaração de reconhecimento de limites” e a procuração outorgada pelos titulares ao advogado do autor desta ação (conforme item 3 da Decisão Interlocutória de fls. 187); portanto, essa necessidade foi suprida nos termos da lei.
  • no tocante aos titulares do imóvel de matrícula 974, a anuência e a procuração outorgadas por Poliana Seranto dos Santos (fls. 84 e 87), apesar de necessárias, não suprem o comando legal, pois mesmo sendo ela a atual possuidora do imóvel confrontante, há o direito real de propriedade dos condôminos Luís Carlos Putin (solteiro) e Nelson Veiga Putin (casado com Maria Aparecida Putin), direito este que deve ser preservado com a providência citatória.
Caso se trate da última hipótese (títulos muito antigos nunca transcritos neste serviço registral imobiliário de Conchas), a segurança jurídica não será abalada, pelos seguintes motivos:
  • a publicação do edital, que foi direcionado a todo e qualquer interessado, é suficiente para legitimar a aquisição originária da propriedade diante de todo e qualquer título de difícil identificação que venha a ser localizado; e
  • eventual título, que ainda exista e venha a ser apresentado, não tem o condão de prejudicar ninguém (quer os autores ou quaisquer terceiros), uma vez que sua utilização no mercado (para alienação ou obtenção de crédito mediante hipoteca) não é possível sem um prévio e complicado procedimento judicial ou extrajudicial, pois o título estaria em nome de pessoas já falecidas e as descrições dos imóveis seriam muito precárias.
Conclusão 3: falta apenas a citação dos titulares do imóvel de matrícula 974 (Luís Carlos Putin, Nelson Veiga Putin e Maria Aparecida Putin) para suprir o comando legal de citação de todos os ex-titulares e confrontantes da área usucapienda.

4.   Consequências do fato de o imóvel não ter origem na Transcrição 10.873
Para a aquisição da propriedade imobiliária por usucapião, a lei não exige continuidade entre o título anterior e o provimento judicial (por isso, a aquisição por usucapião é classificada como originária). No entanto, a existência de justo título resulta em algumas vantagens ao requerente, como a redução da longevidade da posse (prazos menores) e a presunção de sua data inicial cumulada com a continuidade da posse.
Exemplo: a Transcrição 10.873 comprova a posse-propriedade de João Paulo Antunes desde 1º/10/1968 (quando comprou o imóvel);  a certidão de óbito comprova a automática transmissão da mesma “posse-propriedade” aos herdeiros e cônjuge supérstite; o contrato particular de fls. 10 comprovaria a transmissão da posse ao requerente, que teria, a seu favor, a presunção da continuidade da posse desde 1968, desonerando-o da apresentação de outras provas; no entanto, isso não ocorreu no presente caso.
Como o imóvel usucapiendo não tem lastro no título da Família Antunes, os dados constantes da Transcrição 10.873 não favorecem o requerente; portanto, falta agora a comprovação de sua posse longeva (própria ou continuada) para o reconhecimento da aquisição originária.
A única prova constantes dos autos é o contrato de cessão da posse, datado de 11/7/2008. A posse anterior, da Família Antunes, não foi comprovada em nenhum momento, nem no inventário de João Paulo Antunes (fls 18 a 54 deste processo), cujo rol de bens limitou-se aos bens registrados, sabendo eles que o imóvel de Transcrição 10.873 não possuía 22 alqueires, uma vez que houve a expressa identificação da diminuta área constante do registro (vide fls. 10, in fine, “um terreno com a área de 2,16 alqueires”).
Conclusão 4: falta apenas a comprovação da longevidade da posse da Família Antunes sobre a área usucapienda (e não sobre a área que continua em seu poder e que está amparada pela Transcrição 10.873). Quanto à continuidade da posse “ad usucapionem" em favor do requerente, o contrato de fls. 10 é prova mais do que suficiente.

5.   Conclusão Final


As pendências encontradas neste processo são as seguintes:
  • falta a citação dos titulares do imóvel de matrícula 974; e
  • falta a comprovação da longevidade da posse “ad usucapionem” da Família Antunes.
Por fim, reitero que, para a abertura de matrícula do imóvel usucapido, deverão ser apresentados, junto com o mandado de usucapião, A.R.T. (Anotação de Responsabilidade Técnica), plantas e memoriais descritivos (assinados pelo engenheiro e proprietários) e a certificação do Incra no tocante ao georreferenciamento (que pode ser obtida após a sentença declaratória), todos originais, para viabilizar seu arquivamento e microfilmagem neste serviço registral.
Na esperança de ter colaborado para o deslinde da questão, aproveito a oportunidade para destacar a V. Exa. protestos de elevada estima e distinta consideração.

Eduardo Agostinho Arruda Augusto
Oficial de Registro

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