sexta-feira, 27 de maio de 2011

Escritura omissa quanto à existência de Alvará Judicial

CONSULTA 
Foi prenotada uma escritura pública de inventário em que se partilhou um imóvel localizado nesta Comarca. A escritura faz expressa menção à existência de testamento e, por um lapso, nela não consta a existência de autorização judicial para a lavratura do instrumento notarial. 
O tabelião informou que se esqueceu de constar na escritura o alvará judicial, que foi expedido em razão de o testamento não se referir ao imóvel que estava sendo partilhado por aquele instrumento público notarial. 
Considerando que a existência de testamento é fato impeditivo para o inventário extrajudicial, entendo que eu deva exigir a rerratificação da escritura pública para poder registrá-la na matrícula do imóvel. Está correto este meu entendimento?
MPM


PARECER
São elementos essenciais do negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito e idôneo, consentimento e, em alguns casos específicos, forma e legitimação.
Para a lavratura de escritura pública de sucessão "causa mortis" em que houve testamento, o alvará judicial é elemento essencial (na modalidade "legitimação") uma vez que a lei indica a seara judicial como o meio eficaz para determinar a sucessão testamentária.
A falta de um elemento essencial torna o negócio jurídico inexistente (situação ainda pior do que nulo). Não havendo suprimento judicial, essa escritura é inexistente, não podendo, logicamente, produzir nenhum efeito.
Mas cuidado com conclusões precipitadas, pois, segundo o seu relato, não foi exatamente isso que ocorreu.
A expressa declaração dos dados do alvará na escritura pública é obrigatória. No entanto, a sua não-indicação no instrumento não torna nulo (ou inexistente) o negócio jurídico. Isso porque o alvará judicial efetivamente existe, é válido e foi decretado antes da lavratura da escritura (que foi elaborada em obediência a ele).
A falha do tabelião não macula a vontade das partes (o negócio jurídico foi "perfeito" e está "acabado"), nem invalida o instrumento. Apenas o torna incompleto, carecedor tão-somente da comprovação da existência desse suprimento judicial.
Como a inserção da autorização judicial não integra a livre manifestação de vontade das partes do negócio jurídico, não há necessidade de rerratificar a escritura pública, mas apenas complementar a documentação faltante para viabilizar o seu registro.
Diante disso, eu exigiria qualquer "documento notarial" em que esse mesmo tabelião esclarecesse a sua falha com a juntada de cópia "autenticada por ele próprio" do referido alvará judicial. Isso tornará o título registrável e "caso encerrado".
Por fim, exigir uma nova reunião das partes apenas para assistir ao tabelião "transcrever as mágicas palavras do alvará judicial numa escritura pública de rerratificação" mais parece um rito de uma seita macabra do que uma formalidade de direito patrimonial.
É o parecer.
Eduardo Augusto
Registrador em Conchas

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A História de "Seu João Alcides" (Legislação do Georreferenciamento)


Vídeo sobre a história de Seu João Alcides, da Comarca de Conchas, que foi por mim apresentado no "GeoAraraquara" (10 de julho de 2004) e em vários outros congressos, simpósios e palestras sobre georreferenciamento de imóveis rurais.
O tema aqui tratado é o impacto gerado pela nova legislação sobre a comunidade rural quando do início da vigência da legislação do georreferenciamento. Esclareço que se trata de uma situação anterior ao Decreto nº 5.570/2005, que solucionou quase todo o problema discutido nesse vídeo.
O impacto gerado pela divulgação do vídeo ao público especializado e aos órgãos governamentais colaborou muito com para a edição do Decreto nº 5.570/2005. Por esse motivo, nossa homenagem ao "Seu João Alcides", que, mesmo sem saber, conseguiu "fazer a diferença".
Seguem abaixo:
1) a narração completa do vídeo; e
2) importante esclarecimento final.


1. A História de Seu João Alcides
Esta é a história de Seu João, um velho produtor rural de nossa comarca de Conchas, um senhor de 87 anos, batalhador, proprietário de um sítio de 18 alqueires na zona rural de Pereiras, comarca de Conchas.
Sempre deu duro na vida, retirando seu sustento da terra. Comprou seu sítio à vista, em 1950, dinheirinho contado na mão do vendedor. Guarda até hoje com muito carinho a escritura devidamente registrada numa velha, mas bem cuidada pasta de plástico. Ali está seu título, o documento que comprova ser ele um homem de posses. São as escrituras de suas terras feitas pelo tabelião João Herculano de Almeida, falecido há muitas décadas. Dentre os guardados com primor e orgulho, está o recibo manuscrito do então ofício judicial, que registrou seu sítio no livro 3A (transcrição 1.019).
Entretanto, a descrição de seu sítio é por demais falha e não define a forma nem a área exata do imóvel. Mas essa era a forma usual da época para descrever os imóveis rurais:
"Um sítio localizado na Água Choca, município de Pereiras, com uma área de mais ou menos 300 braças quadradas, dividindo com Fulano, Sicrano e Beltrano."
As descrições vagas e lacônicas dos registros antigos não foram assim feitas por culpa dos proprietários. Era a regra vigente e por todos aceita. Era o que o Estado fazia e, com base nela, prometia garantir a eles a necessária segurança jurídica.
Com o passar do tempo, houve um progressivo (e correto) rigor na interpretação dos princípios registrais, em especial do princípio da especialidade objetiva. No entanto, apenas nós, registradores, sabemos disso. O Seu João, orgulhoso de seu título registrado e muito bem conservado, nunca ouviu falar nisso…
Por volta do final da década de 1960, esse pequeno proprietário rural, que é um leigo, teve parcela de sua terra desapropriada pelo Estado para passagem de uma rodovia. Um pedaço pequeno, num canto, tanto que ele nem fez questão de discutir os valores, aceitando de bom grado a desapropriação amigável. Afinal, a estrada traria progresso para suas terras.
No passado nunca se fazia descrição de remanescente. Resultado: com a perda de parcela de área, seu imóvel, cuja transcrição já estava mal descrita, ficou com a especialidade objetiva e disponibilidade qualitativa ainda mais comprometidas.
“Impossível abrir matrícula, Seu João. Vai precisar pedir pro Juiz”, disse-lhe o cartorário há alguns anos.
Desesperado para emitir cédulas hipotecárias e dar continuidade à sua lavoura, Seu João, com muita dificuldade, paga engenheiro, paga advogado, com dinheiro contado moeda por moeda. O levantamento do engenheiro é lento, demora algumas semanas. Depois disso, o processo é iniciado e tramita muito mais lentamente ainda. No meio do caminho, leis, decretos, portarias do Incra, documentos de que Seu João nunca ouviu falar – bem como e a bem da verdade nem seu advogado.
Antes da sentença, o juiz, cauteloso, remete o processo para manifestação do oficial de registro. Ciente da nova lei do georreferenciamento, o oficial faz seu parecer em teor técnico e de um primor jurídico inigualável. O juiz acata. Decisão interlocutória:
“Prazo para georreferenciar o imóvel sob pena de extinção do feito”.
Seu João não teve alternativa: desistiu da ação por insuficiência financeira para dar prosseguimento ao processo.
Em face disso, pergunto-lhes: Como exigir o georreferenciamento nesse caso? E o princípio da razoabilidade? E o direito do proprietário de dispor de suas terras? E a gratuidade que a lei do georreferenciamento lhe garante?
Como ainda não houve a regulamentação sobre a gratuidade do georreferenciamento, Seu João perdeu tudo. Perdeu o dinheiro pago ao engenheiro, cujo serviço não serviu de nada; perdeu o dinheiro pago ao advogado, cujos honorários lhe são devidos em pagamento aos serviços prestados; perdeu o financiamento que o Banespa lhe havia prometido mediante emissão de cédula rural hipotecária, uma vez que não há como registrar a hipoteca sem abrir matrícula.
Conclusão: criaram um sistema novo para dar mais segurança jurídica ao proprietário rural, para ajudar o produtor rural, para ajudar Seu João, para trazer progresso à suas terras… Louvável iniciativa pública!
Mas, em virtude disso, Seu João está perdendo tudo! Seu João está passando fome!
Desesperado, Seu João encontra alguém que quer comprar suas terras – sua salvação!
Mas não pode vendê-las! O tabelião sabe que não há como descrever o imóvel na escritura nem há como registrá-la. Propõe, então, um contrato de gaveta –paliativo, mas todos fazem–, porém o interessado pelas terras se assusta e vai embora. Seu João perde o negócio, perde de novo; continua a passar fome…
Esta é a história de Seu João Alcides, da comarca de Conchas. Mas também é a história de muitos outros Joãos de nosso imenso Brasil, pessoas honestas, trabalhadoras, de vida sofrida, que necessitam e aguardam a compreensão do Estado para uma vida melhor.
Seu João, essa é a sua história. Seu João, essa é a verdadeira história do Brasil!!!



2. Esclarecimento Final: A Verdadeira História
A história de Seu João foi contada em todo o Brasil. Por ser uma história que se encaixa perfeitamente na difícil situação de vários brasileiros por aí afora, teve que ser repetida à exaustão, pois a realidade comove, a realidade choca.
O registro imobiliário é um repertório de importantes informações sobre a comunidade local. Para conhecer uma boa parte da história de uma localidade, basta pesquisar o conteúdo dos registros públicos, em especial as matrículas e seus assentos modificadores. Praticamente, tudo passa pelo registro, e a história se perpetua, fica gravada para sempre nos arquivos do cartório.
Ano e meio após a produção desse vídeo, chegou no Registro de Conchas um documento para ser averbado numa matrícula. Uma certidão de óbito novinha, extraída há poucos dias, que noticiava o falecimento de um cidadão da comarca. Seria um documento comum, como qualquer outro que chega diariamente ao serviço imobiliário para completar as informações do registro, se não fosse um porém:
A certidão comunicava o falecimento do nosso velho amigo Seu João Alcides.
Mas sua história não teve um final tão trágico como parece. Sua história, contada aos quatro cantos do país, não foi exatamente como narrada.
Na verdade, ao término da ação judicial de retificação de registro, o processo não foi extinto pelo não-cumprimento da lei do georreferenciamento. Não foi porque o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Registro Imobiliário de Conchas trabalham com um mesmo fim, todos objetivam a Justiça do caso concreto. A lei, da forma como estava (antes do Decreto nº 5.570/2005), era injusta e merecia flexibilização. E assim foi decidido.
Seu título judicial resultou numa nova matrícula para seu imóvel, totalmente saneada de velhos vícios e, logo em seguida, Seu João efetuou a doação de seu sítio a seus dois únicos filhos, reservando a si o usufruto vitalício do imóvel, uma vez que não possuía nenhum outro bem.
Seus filhos obtiveram acesso ao crédito rural e construíram uma pequena granja. Os negócios vão bem e a família – Seu João, os filhos, as noras e os cinco netos – conheceu finalmente a fartura sobre a mesa. A certidão de óbito apresentada era para extinguir o usufruto. Junto com ela, uma outra cédula de crédito rural hipotecária, ou seja, um outro financiamento, novos negócios, mais progresso para a família.
Seu João cumpriu seu papel social entre nós. Deixou filhos e netos, bem encaminhados. Deixou seu patrimônio previamente partilhado. Deixou tudo bem documentado, como sempre gostou de fazer. Deixou, enfim, muitas saudades!

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Inviabilidade da Novação por Retificação de Registro ou Rerratificação do Título

CONSULTA 


Dr. Eduardo Augusto: 
Na matrícula de um imóvel rural de titularidade da Empresa A, há o registro de uma hipoteca garantindo uma dívida, no valor de 2 milhões, que a Empresa C tem em favor do credor Empresa B. 
As partes pretendem, por meio de uma escritura de rerratificação, modificar o valor da dívida de 2 para 5 milhões, mantendo-se todas as demais cláusulas do contrato original.
É possível tal modificação por escritura de "rerrati" ou seria necessário um procedimento de retificação de registro?
MT




PARECER

A alienação e oneração de bem imóvel, por imposição legal visando a garantir a necessária segurança jurídica, possui natureza complexa, assim resumida:
  • negócio jurídico de alienação ou oneração: escritura pública
  • transferência patrimonial ou concretização do ônus real: registro do título aquisitivo ou de oneração
Uma vez presentes os elementos essenciais (que englobam os elementos naturais) do negócio jurídico, este é considerado perfeito e acabado, somente aceitando correções (mediante escritura pública de rerratificação) que sejam absolutamente necessárias para a execução daquilo que foi pactuado na origem, sem a modificação desses elementos essenciais e naturais.
No caso de oneração de bem imóvel, pelo instituto da hipoteca, os elementos essenciais (que não podem ser simplesmente alterados por rerratificação) são:
a) Elementos Essenciais Comuns:
  • agente capaz: credor, devedor e, quando o imóvel não é do devedor, terceiro-garantidor;
  • objeto lícito e idôneo: imóvel matriculado (sem cláusula de inalienabilidade nem decretação de indisponibilidade); e
  • consentimento: manifestação inequívoca das partes (desejo de hipotecar e de aceitar a hipoteca) perante o tabelião
b) Elementos Essenciais Específicos:
  • forma solene: escritura pública; e
  • legitimação: apenas quando o titular do imóvel for casado ou incapaz (outorga conjugal ou alvará judicial)
Os elementos naturais da hipoteca (que também não podem ser simplesmente alterados por rerratificação) são:
  1. dar em "garantia" um imóvel (identificado) por uma dívida (identificada em um outro contrato principal);
  2. a existência de um contrato principal não quitado;
  3. menção expressa aos elementos essenciais e naturais do contrato principal:
    • natureza do contrato (e outras informações que dependem dessa identificação)
    • valor da dívida garantida
    • prazo para pagamento da dívida (termo)
    • eventuais condições existentes (resolutivas ou suspensivas)
    • taxa de juros, mora, etc.
  4. obrigação ex-lege (não precisa estar expressa no título) de registrar a hipoteca na matrícula do imóvel.
Exemplo retificável por escritura pública de rerratificação: uma escritura pública de hipoteca não registrada com falha na identificação do credor (erro evidente de digitação do valor da dívida, havendo divergência entre o valor em algarismos e o valor por extenso, por exemplo) comporta rerratificação pois não há alteração das partes contratantes, dos objetos (o mesmo imóvel em garantia da mesma dívida), nem do consentimento (a falha ocorrida e a correção efetuada não afeta a vontade original das partes).
Mesmo nessas situações, a escritura de rerratificação somente será possível antes do registro desse título. Após isso, caso o vício tenha sido transportado para o registro imobiliário, a solução para corrigi-lo será:
  • procedimento extrajudicial de retificação de registro, caso se comprove que se trata de erro, falha ou omissão de especialidade (objetiva, subjetiva ou do fato jurídico) e que tal erro seja extrínseco ao mérito do negócio jurídico; ou
  • processo judicial de cancelamento de negócio jurídico (da escritura) e de cancelamento de registro (do registro da hipoteca), caso o vício corrompa alguns do elementos essenciais do negócio jurídico (alienante não era o proprietário; existência de erro, dolo, coação, simulação ou fraude; dívida em decorrência de ato ilícito; etc.).
1. Análise do Caso Concreto 
1.1 A Escritura de instituição de hipoteca:
a) título (formal):
  • escritura pública de "hipoteca" (imóvel x dívida).
b) partes (todos agentes capazes):
  • Empresa A (titular do imóvel); 
  • Empresa B (credora); 
  • Empresa C (devedora).
c) objeto lícito e idôneo:
  • imóvel rural em Conchas-SP (matriculado e sem impedimento legal). 
d) consentimento:
  • tabelião conferiu a vontade expressamente manifestada pelas partes; e
  • até o momento não há notícia de qualquer vício nesse aspecto.
e) forma do título:
  • escritura pública sem qualquer vício identificado; e
  • legitimação: se o imóvel fosse de pessoa natural casada, cujo cônjuge não fosse titular do imóvel, haveria necessita de outorga conjugal (uxória ou marital).
f) obrigações:
  • registrar a escritura na matrícula do imóvel; e
  • pagar a dívida para liberar o imóvel da hipoteca.
Conclusão:
A escritura de hipoteca é um negócio jurídico perfeito e acabado (protegido pela nossa Carta Magna), independentemente de seu registro (que é apenas uma das obrigações inerentes a essa espécie de contrato).
CF, artigo 5º, XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada

1.2. Registro da hipoteca na matrícula do imóvel:
O título foi prenotado, qualificado positivamente pelo RI de Conchas e resultou no registro da referida hipoteca na matrícula do imóvel.
Conclusão:
A garantia hipotecária concretizou-se com o registro, dando àquele negócio jurídico perfeito e acabado (a escritura de hipoteca) a "quitação da primeira obrigação" (o registro da hipoteca).

2. Pretensão atual das partes:
As partes desejam fazer a seguinte alteração referente à hipoteca:
  • aumentar o valor da dívida (de 2 milhões para 5 milhões).

2.1 Análise quanto à possibilidade de Escritura Pública de Rerratificação:
O valor da dívida é um elemento natural do contrato principal (de mútuo ou outro de espécie análoga);
Portanto, o aumento pretendido pode ocorrer de duas maneiras:
  • "alteração" do contrato original pela modalidade da novação (uma nova obrigação que extingue a anterior); ou
  • continuidade do contrato anterior (de 2 milhões) e início de outro contrato (de 3 milhões), totalizando o valor final de 5 milhões desejado pelas partes.
Independentemente da forma ocorrida no contrato principal, a escritura de hipoteca, nesse caso, não comporta rerratificação, pois a alteração que se pretende atinge elementos naturais do contrato principal e, consequentemente, do contrato acessório ("o acessório segue o principal").

Conclusão:
O que se pretende fazer configura um novo negócio jurídico (mesmo que pelo instituto da novação - vide CC, artigos 360 e seguintes).
Portanto, não cabe escritura pública de rerratificação, pois:
  • não há vícios extrínsecos a serem sanados (nem intrínsecos, segundo os relatos); e
  • a escritura anterior é um ato jurídico perfeito que já está produzindo efeitos desde a sua lavratura.
2.2 Análise quanto à possibilidade de Retificação de Registro:
A hipoteca já está registrada na matrícula, portanto só cabe retificação por procedimento de retificação de registro.
Somente cabe retificação de registro se houver erro, falha ou omissão:
  • especialidade objetiva: erro ou imperfeição na descrição do imóvel (nunca substituir um imóvel por outro)
  • especialidade subjetiva: erro na qualificação das partes (nunca substituir uma pessoa por outra)
  • especialidade do fato jurídico: erro na descrição das obrigações (exemplo: na escritura de hipoteca esqueceram de constar a existência da taxa de juros, que consta do contrato principal registrado em RTD ou feito por instrumento público)
Conclusão:
O que se pretende alterar configura um novo negócio jurídico (mesmo que pelo instituto da novação).
Portanto, não cabe procedimento de retificação de registro, pois:
  • não há vícios extrínsecos no registro a serem sanados (nem intrínsecos, segundo os relatos); e
  • o registro está perfeito e continua produzindo efeitos.

3. Solução
Para que o desejo das partes resulte em direitos registrados, há que se fazer inicialmente o seguinte:
  • identificar o que realmente ocorreu com a dívida anterior, ou seja, descobrir se ela foi paga ou se a intenção é uma novação.
Considerando que seja novação (hipótese mais provável), a solução é a seguinte:
  • fazer contrato de novação da dívida principal;
  • escritura de instituição da nova hipoteca, dando por quitada a dívida anterior (que resultará no cancelamento da hipoteca anterior) e instituindo nova garantia sobre a dívida inovada, constando todos os elementos essenciais e naturais do contrato principal de novação.
Considerando que seja um novo contrato (complementar) sem extinção do anterior, a solução passa a ser a seguinte:
  • o contrato anterior e a hipoteca permanecem intactos (não mexer neles);
  • fazer novo contrato principal pelo valor "complementar" de 3 milhões;
  • escritura de instituição de hipoteca de 2º grau para garantir esse novo contrato.
É o parecer. 

Eduardo Augusto
Diretor do Irib

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Usucapião de Imóvel por Proprietário Tabular


Usucapião é o direito de propriedade adquirido por aquele que exerce a posse de um bem móvel ou imóvel, após um determinado período estipulado pela lei. Tal direito deve ser reconhecido pelo juiz em sentença declaratória em uma ação de usucapião.

Sobre esse tema, há uma questão polêmica:
Pode o proprietário de um imóvel (aquele cujo nome consta da matrícula do imóvel) requerer um provimento judicial que reconheça seu direito de propriedade por usucapião?
Costuma-se dizer que "o proprietário tabular não tem interesse de agir para usucapir seu imóvel"; portanto, o pedido é julgado improcedente por carência de ação.
Vamos analisar bem essa situação.
São condições da ação: legitimidade, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir. O interesse de agir deve ser analisado sob dois aspectos: o da necessidade e o da adequação.
  • proprietário da totalidade do imóvel que quer apenas retificar a descrição constante da matrícula: falta-lhe "necessidade" de declaração judicial de propriedade, pois ele já é titular do imóvel e inexiste "adequação", pois o procedimento eleito pela lei para a satisfação da pretendido é a retificação de registro, que pode ser judicial ou extrajudicial (artigo 212 da Lei de Registros Públicos);
  • proprietário de fração ideal do imóvel que quer reconhecida a titularidade sobre parcela certa do mesmo imóvel: não há "adequação", pois a lei oferece dois procedimentos para isso: escritura de divisão amigável ou ação judicial de extinção de condomínio.

Diante disso, a assertiva "o proprietário tabular não tem interesse de agir para usucapir seu imóvel" parece estar correta. No entanto, isso não se mostra verdadeiro diante de circunstâncias especiais.
Vejamos um exemplo mais detalhado, a do condômino que pretende usucapir a porção de terra em que ele mantém sua posse mansa e pacífica. No condomínio, cada consorte tem uma fração ideal sobre o todo e não sobre uma parte certa e localizada do imóvel. Ou seja, em um imóvel de 10ha com 2 condôminos com frações iguais (50%), cada um tem a metade ideal do imóvel, o que não significa que cada um tenha 5 alqueires, mas sim que "cada um deles tem 10ha com poderes e deveres limitados a 50%".
A extinção do condomínio deve ser sempre buscada, sob pena de vir a trazer complicações futuras de difícil solução. Por esse motivo, há quem denomine essa multiplicidade de coproprietários de "condomínio perverso", pois, além de ser um ambiente emulador de discórdias, costuma se tornar inviável com o aumento exagerado de participantes. Sem a tão desejada extinção, com o passar do tempo as pessoas vão falecendo e deixando sua fração ideal a uma pluralidade de herdeiros. Um simples condomínio de 2 pessoas pode, após décadas, ter se transformado num condomínio de dezenas de pessoas desconhecidas, perdidas no mundo, sem interesse na coisa comum, impedindo a localização de todos para uma eventual alienação do todo ou para a extinção da copropriedade. Isso sem falar dos casos de falecimento em que não se processam inventários, atravancando a matrícula de forma tão incisiva que a única solução viável será uma ação de usucapião proposta por aqueles que efetivamente ocupam todo o imóvel ou uma parcela dele.
Para que o coproprietário (aquele possui um título registrado na matrícula do imóvel) tenha exclusividade sobre uma parcela certa e localizada do terreno, a legislação prevê dois caminhos: uma escritura pública de divisão amigável ou uma ação judicial de extinção de condomínio. Por esse motivo, costuma-se dizer que:
O proprietário tabular não tem "interesse de agir" para usucapir seu imóvel, tanto pela falta de "necessidade" (não precisa de decisão judicial para declarar um direito que já possui) como pela falta de "adequação" (a via judicial adequada é a extinção de condomínio e não a ação de usucapião).
No entanto, há que se corrigir certas impropriedades dessa afirmação.
Quanto à ausência de necessidade (modalidade 1 da falta de interesse de agir), isso não é bem verdade, uma vez que o direito de propriedade constante do registro (fração ideal de um todo) é diverso do direito de propriedade que se pretende ver reconhecido pelo Judiciário (titularidade sobre porção certa e localizada do terreno). Lógico que esse novo direito reconhecido judicialmente substitui por completo o direito matriculado, devendo ser averbada na matrícula do imóvel não apenas a exclusão da parcela da área usucapida, como também a exclusão do ex-condômino do respectivo rol de titulares.
Quanto à ausência de adequação (modalidade 2 da falta de interesse de agir), muitos casos apresentam peculiaridades que demonstram ser excessivamente oneroso (quando não impraticável) os procedimentos eleitos pela lei. Existem muitas matrículas que possuem um excessivo número de proprietários tabulares, isso sem contar as prováveis alienações informais, as possíveis sucessões "causa mortis" não formalizadas e eventuais aquisições por usucapião de parcelas do mesmo imóvel matriculado, situação esta que inviabiliza a identificação de todos os condôminos e sucessores para o procedimento regular.
Não sendo possível a participação dos demais condôminos para a lavratura de escritura pública de divisão amigável e sendo inviável a ação judicial de divisão (devido a multiplicidade de condôminos e a indefinição de quem sejam alguns), a única solução que sobra ao condômino interessado em solucionar seu problema é o pedido de usucapião "da área específica em que mantém posse". Diante disso, o Judiciário reconhecerá o "interesse der agir", pois estará comprovada a "necessidade" de um provimento judicial e a ação de usucapião é o procedimento que apresenta melhor "adequação" para satisfazer a pretensão do autor.
Desde que preenchidos os requisitos legais, a lei não impede a utilização do procedimento de usucapião para a regularização dos direitos incidentes sobre bem imóvel (sendo inclusive mais seguro, uma vez que possui rito mais rigoroso, depende de publicação de editais e há a participação das fazendas públicas no processo).
Quanto a considerar justo título a escritura pública devidamente registrada, isso já está pacificado, havendo muitos acórdãos e doutrina nesse sentido. Se uma escritura viciada não registrada é justo título, por que uma escritura de fração ideal devidamente registrada (que possui fé pública "juris tantum") não teria o mesmo benefício legal? Tal discriminação não faria nenhum sentido, pois privilegiaria o "título ruim" em detrimento do "ato jurídico perfeito".
Por fim, há vários precedentes, dos quais se destaca um caso ocorrido na Comarca de Conchas, decidido pelo Tribunal de Justiça:
Usucapião tabular - Imóveis rurais com descrições imperfeitas, que se encontram parcialmente registrados em nome dos autores - Partes ideais calculadas sobre valores e não sobre frações - Registros omissos e errados - Usucapião como modo não só de adquirir a propriedade, mas de sanar os vícios de propriedade defeituosa adquirida a título derivado - Possibilidade jurídica do pedido - Incidência do artigo 515, §3º do  CPC - Ação procedente - Recurso provido. (Apelação Cível nº 385.907.4/3-00, da Comarca de Conchas, rel. designado: Francisco Loureiro, j. 20/10/2005).
Diante de todo o exposto, conclui-se o seguinte:
Não há carência de ação pela falta de interesse de agir (falta de adequação) na ação de usucapião ajuizada pelo proprietário tabular, se for comprovado que os instrumentos legais adequados são de excessiva onerosidade (ou até mesmo inviáveis) para a solução do vício existente no registro de seu bem imóvel.
É o parecer. 

Eduardo Augusto
Diretor do IRIB
Registrador em Conchas-SP

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Reativação da Sociedade Dissolvida

(Tema de RCPJ - Registro Civil de Pessoas Jurídicas) 



CONSULTA 

Sociedade simples, que permaneceu unipessoal por mais de 180 dias, leva agora a registro a alteração contratual incluindo novo sócio. O registrador, com base no inciso IV do artigo 1.033 do Código Civil, devolve o título sob o argumento de que a sociedade está dissolvida e, por esse motivo, não há como incluir o novo sócio. 
Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias.
Essa sociedade está extinta?
E os atos praticados por ela durante esse período?
A única saída seria, então, um novo contrato social para um novo registro da sociedade?
O que mais me parece viável, é o registro da alteração contratual incluindo novo sócio para "salvar" a sociedade ("princípio da preservação das empresas"). Mas conheço decisões de algumas Corregedorias Permanentes que indeferiram a averbação da alteração contratual após o prazo de 180 dias.
Como solucionar essa situação?

Obrigada
KFMS



PARECER

O complicado trajeto percorrido pelas sociedades tem início numa pequena e promissora cidade denominada "constituição", possui um longo e tortuoso percurso no vale da "atividade" e, caso o "condutor" se perca diante das várias bifurcações existentes, pode atingir o temido vilarejo da "dissolução".


Tendo um determinado "condutor" chegado a esse decadente vilarejo e percebido, de imediato, que os moradores não gostam de forasteiros, consulta seu GPS e percebe que essa estrada continua em direção ao distrito da "liquidação" e, logo mais à frente, termina num abismo denominado "extinção". 
Sem saber o que fazer, percebe que seu veículo é cercado por várias pessoas mal-encaradas que ficam no aguardo de sua decisão. Que enrascada!
Diante disso, convém analisar o seguinte:
  • essa "estrada" é uma via de mão única?
  • o xerife local pode proibir que esse "condutor" retorne ao vale da "atividade"?
  • os capangas do xerife podem forçar o "condutor" a seguir em frente, escoltando-o até a saída da cidade?


Isso está me parecendo um filme de terror...
A lei trata da constituição, da atividade, da dissolução, da liquidação e da extinção das sociedades.
Mas não se encontra nenhuma previsão quanto à obrigatoriedade de se percorrer todo esse caminho.
Aliás, o nosso ordenamento jurídico (em especial, a nossa Carta Magna) defende ferozmente a "vida", a "liberdade", a "livre iniciativa", a "saúde" e, ao tratar de infortúnios, ainda o faz com muita complacência (ex.: proibição da pena de morte e de trabalhos forçados). Ou seja, a lei incentiva a "atividade saudável" e abomina toda e qualquer "irregularidade"; e, diante das irregularidades, a regra sempre foi o "saneamento" (pena alternativa), aceitando, apenas como exceção, a "pena capital" (estado de guerra, legítima defesa, aborto terapêutico).
Diante disso, como defender que pode o ordenamento jurídico decidir antecipadamente pela "morte" (extinção) de um "enfermo" (sociedade dissolvida), impedindo-o de se tratar?
Isso me parece um contrassenso.
A lei mostra o complicado caminho para a extinção das sociedades, mas, pelo que me parece, em nenhum momento proibiu que os sócios desistissem de seu percurso e regularizassem a entidade. A escolha pelo retorno não estaria inserida no "direito de ir e VIR"?
Portanto, enquanto juridicamente não ocorrer a "morte" da sociedade (que somente se concretiza pela extinção), parece-me que nada impede que esta se restabeleça e venha a cumprir a sua função societária (em prol dos sócios) e a sua função social (colaborando com o progresso e desenvolvimento nacional). Enquanto ela estiver viva, a ninguém é permitido atentar contra a sua vida.
Lógico que a sociedade responderá, nos termos da lei, por todos os atos (regulares ou irregulares) que praticar durante esse "período sombrio", pois a regularização não tem efeito "ex-tunc", ou seja, apenas na data do registro da documentação necessária, ocorrerá a sua "reagregação" (reversão da dissolução; senti-me compelido a inventar essa palavra). Barrar sua regularização é o mesmo que cortar o suprimento de oxigênio de um doente para vê-lo agonizar até a morte.

Não estou contrariando o artigo 1.033 do Código Civil, pois concordo plenamente com seu mandamento. Passado o prazo de 180 dias sem a pluralidade de sócios, ela estará dissolvida de pleno direito, continuando nessa "desagradável situação" até que seus sócios decidam por uma dessas alternativas:
  • pratique todos os atos necessários para a "sua extinção", passando pela "liquidação" (o maior óbice: obter a CND de contribuições previdenciárias); ou
  • regularize sua situação no registro competente e, a partir daí, volte a colaborar com a economia nacional.

Até o momento, esta é a minha convicção sobre o tema.

Eduardo Augusto
Registrador em Conchas-SP

terça-feira, 17 de maio de 2011

Limites Municipais do Estado de São Paulo

LIMITES MUNICIPAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO 
LEVANTAMENTO GEORREFERENCIADO DE IMÓVEL RURAL 
COMPETÊNCIA LEGAL E PROCEDIMENTO 

PARECER 

Introdução 
Trata-se de consulta relacionada ao levantamento georreferenciado de imóveis rurais que se encontram localizados nas zonas limítrofes de dois ou mais municípios do Estado de São Paulo, exigindo do agrimensor a definição de qual circunscrição municipal se encontra o imóvel, se próximo à linha divisória, se coincidente com esta ou se a superfície do bem imóvel abrange o território de mais de um município.
Portanto, as hipóteses que compõem este estudo são as seguintes:
  1. imóvel localizado inteiramente em um município, bem próximo da divisa intermunicipal;
  2. imóvel localizado inteiramente em um município, mas confrontando com o território de outro município; e
  3. imóvel localizado em mais de um município.

Figura 1 – Hipóteses relacionadas aos limites municipais.

Na figura 1, o Sítio Fundo, como se encontra inteiramente no Município “A” e nem confrontação faz com o Município “B”, seu registro foi corretamente efetivado na circunscrição imobiliária A. Situação simples que não causa qualquer dúvida. A Fazenda Chicus está inteiramente localizada no Município “B” (apesar de algumas de suas perimetrais coincidirem perfeitamente com a linha limítrofe entre os dois municípios) e está matriculada no registro imobiliário do mesmo Município “B” (Mat. 18.876). O Sítio Ary Pires, por estar localizado nos dois municípios, está registrado em ambas circunscrições imobiliárias (Matrícula nº 45.986 no Registro Imobiliário do Município “A” e Matrícula nº 9.812 no Registro Imobiliário do Município “B”), sendo idênticas as duas descrições tabulares, que declaram que o referido imóvel encontra-se localizado em ambos os municípios.
Essa é a situação juridicamente correta dos imóveis exemplificados na Figura 1. Entretanto nem sempre os dados do registro imobiliário e do cadastro do Incra estão coerentes com a realidade fática.
A importância desse estudo está na dificuldade de identificação dos pontos formadores dessa linha divisória entre os entes municipais, principalmente agora que os imóveis rurais estão sendo georreferenciados por imposição legal. As prefeituras, de uma maneira geral, não dispõem desses dados. Os agrimensores, quando se deparam com imóveis nessas situações, sentem enorme dificuldade em definir os pontos georreferenciados referentes a esses limites, pois não encontram informações seguras que lhes garantam o desempenho de suas funções sem potencialidade de danos a terceiros, situação que os deixam sujeitos a responsabilização administrativa, civil e criminal por seus atos. Em suma, prevalece a indefinição.
1. Histórico
A maneira como o território brasileiro foi ocupado e a forma como se deu o ingresso dos títulos de domínio nos primórdios do registro imobiliário são circunstâncias suficientes para concluir que a grande parte dos imóveis localizados nessa zona limítrofe tiveram sua localização municipal definida por simples declaração do proprietário, sem a existência ou mesmo preocupação por qualquer sistema de controle. Os imóveis, anteriormente de áreas imensas, foram sendo paulatinamente desmembrados e alienados, formando outros de menor tamanho que, por sua vez, eram também parcelados e alienados. Nesses parcelamentos, dificilmente efetivados mediante técnicas de agrimensura, competia ao proprietário definir a nova descrição, a área e a localização de seu pedaço de terra. A conseqüência disso é o conturbado cenário atual tanto do cadastro imobiliário (a cargo do Incra) como do registro imobiliário.
Figura 2 – Divisão legal dos municípios.

A situação demonstrada na figura 2 é a juridicamente correta, estando cada imóvel registrado em sua competente circunscrição imobiliária, conforme sua localização espacial no território de um ou de outro município. No caso de um dos imóveis (Sítio Ary Pires, que está hachurado), por sua superfície abranger o território de mais de um ente municipal, seu registro está efetivado em ambas as circunscrições.
Entretanto, devido aos problemas históricos já mencionados, a situação normalmente verificada nas zonas limítrofes de municípios é que cada imóvel está registrado na circunscrição imobiliária que o proprietário da época do desmembramento julgou estar localizado seu pedaço de terra. Assim há imóveis integralmente localizados no Município “B” que estão registrados como se estivessem localizados no território do Município “A” e vice-versa. Basta uma simples busca nas matrículas dos imóveis localizados nessa zona limítrofe para constatar essa situação.
Figura 3 – Divisão conforme registro imobiliário.

As falhas demonstradas na figura 3 são as seguintes: o Sítio Fundo, localizado no Município A, está registrado como se estivesse localizado no Município B. A Fazenda Chicus está registrada como se sua área abrangesse ambos os territórios, apesar de estar localizada inteiramente no Município B. O Sítio Ary Pires está registrado como se estivesse localizado apenas no Município A, apesar de a verdadeira divisa intermunicipal cortá-lo ao meio. Essa situação hipotética representa muito bem a real situação dos imóveis localizados nas proximidades das divisas intermunicipais.
2. Situações hipotéticas
2.1 Imóvel localizado em um município, próximo à divisa intermunicipal
Figura 4 – Imóvel próximo ao limite do município.

Situação: o imóvel está inteiramente localizado em um único município; sua superfície não alcança a linha limítrofe com o município vizinho, apesar de relativa proximidade.
O Sítio Fundo, conforme demonstra a figura 4, está localizado no Município “A” e deve estar matriculado na circunscrição imobiliária que abrange esse município.
2.2 Imóvel localizado em um município, mas confrontando com outro município
Figura 5 – Imóvel confrontando com o limite intermunicipal.

Situação: a Fazenda Chicus está localizada integralmente no Município “B”, apesar de estar confrontando diretamente o território do Município “A”, significando que algumas de suas perimetrais coincidem perfeitamente com a linha da divisa intermunicipal.
Sua localização, portanto, é o Município “B” e deve o referido imóvel ser matriculado exclusivamente na serventia imobiliária que tenha competência territorial sobre esse município.
2.3 Imóvel localizado em mais de um município
Há três formas de tratar o assunto.
A primeira, que seria a mais coerente, é o desmembramento do imóvel, de forma que cada parcela resultante (imóvel autônomo, matriculado) fique integralmente no território de um município. Evitaria uma série de problemas, principalmente os relativos às competências administrativa, tributária, jurisdicional, registral, etc.
A segunda forma, também bastante coerente, é a utilização de uma descrição tabular completa (do todo) e das duas descrições referentes às parcelas de acordo com a competência territorial (em seguida à descrição do todo ou por intermédio de uma averbação). Apesar de continuar sendo um único imóvel, a descrição exata das parcelas localizadas em municípios distintos além de prevenir uma série de problemas, colabora com os órgãos estatísticos do governo para a definição de suas políticas públicas.
A terceira opção, a mais tênue dentre elas, resume-se na descrição do todo e na mera declaração de que tal imóvel está localizado em dois ou mais municípios, sem definir as áreas de cada parcela ou a linha divisória entre elas. Há descrições antigas que trazem apenas a área de cada parcela sem definir os limites. Nesses casos, ou a área declarada foi arbitrada sem qualquer cálculo matemático aceito pela agrimensura (hipótese geral) ou o cálculo da área foi efetivado com base na linha limítrofe entre os municípios, sem contudo declarar na matrícula a sua descrição (hipótese praticamente inexistente).
Para fins didáticos ligados a este estudo, será considerada apenas a hipótese 2 (descrição do todo e das parcelas).
Figura 6 – Imóvel com área localizada em 2 municípios.

Estando o imóvel localizado em dois ou mais municípios, deve-se verificar se a circunscrição imobiliária desses municípios é a mesma ou não.
Se ambos os municípios pertencem à mesma circunscrição, haverá apenas uma matrícula referente a esse imóvel, com descrição tabular do todo e de cada uma de suas parcelas.
Se a competência registral imobiliária também for distinta, o assento registral deve ser igualmente efetivado nos dois ofícios, conforme determina a Lei dos registros Públicos:
LRP – Art. 169 - Todos os atos enumerados no artigo 167 são obrigatórios e efetuar-se-ão no cartório da situação do imóvel, salvo:
II - os registros relativos a imóveis situados em comarcas ou circunscrições limítrofes, que serão feitos em todas elas, devendo os Registros de Imóveis fazer constar dos registros tal ocorrência.
Até agora o assunto foi tratado conforme a vontade da lei e a lógica do sistema. Exclusivamente sob esse prisma, a definição de como descrever os imóveis e de como proceder seu registro são tarefas de fácil padronização.
Entretanto, há uma variável, de extrema importância, que ainda não foi estudada: onde fica a linha limítrofe dos municípios?
3. Definição da divisa intermunicipal
O município, pessoa jurídica de direito público interno, é hoje um ente político autônomo finalmente reconhecido pela Constituição de 1988:
CF – Art. 18 - A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Antes da atual Constituição, a competência da organização interna do município era atribuição do Estado. Hoje, apesar de ser uma circunscrição do território estadual, compete ao próprio município elaborar sua lei orgânica, a qual deverá respeitar todos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição de seu Estado.
A criação de município depende hoje de lei estadual precedida de consulta plebiscitária às populações dos municípios envolvidos, após a realização de estudos de viabilidade municipal, nos termos do §4º do artigo 18 da Carta Magna (com redação dada pela Emenda Constitucional nº 15, de 1996):
§4º - A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.
No Estado de São Paulo, a legislação que cuida do quadro territorial-administrativo do Estado é a Lei nº 8.092, de 28 de fevereiro de 1964, cujo anexo nº 2 descreve sistematicamente as divisas intermunicipais:
Artigo 3º - O Quadro Territorial, Administrativo e Judiciário do Estado compreende 242 comarcas, 573 municípios e 871 distritos conforme os anexos nº . 1 e 2, que ficam fazendo parte integrante desta lei.
§ 1º - No anexo nº 1 é feita a relação sistemática e ordenada de todas as circunscrições administrativas e judiciárias da divisão territorial, com indicação de categoria das respectivas sedes, que tem a mesma denominação da própria circunscrição.
§ 2º - O anexo nº 2 descreve sistematicamente as divisas intermunicipais e as divisas interdistritais e, bem assim, consigna o ano de criação de cada município.
§ 3º - Além dos anexos referidos, fica também fazendo parte integrante desta Lei o anexo nº 3, que contém a descrição sistemática das divisas intersubdistritais.
Na década de 90, houve uma enorme alteração territorial-administrativa, com a criação de mais de 1.200 municípios em todo o País. Somente no Estado de São Paulo, foram criados 73 novos municípios pelas seguintes leis estaduais:
  1. Lei nº 6.645/90;
  2. Lei nº 7.664/91;
  3. Lei nº 8.550/93; e
  4. Lei nº 9.330/95.

Todas essas leis, além de definirem as divisas intermunicipais dos novos entes políticos, também complementaram os anexos 1 a 3 da Lei nº 8.092/64.
Em decorrência, todo município paulista possui sua descrição perimétrica aprovada por lei estadual (anexo nº 2 da Lei nº 8.092/64 englobadas as alterações posteriores), o que a torna a descrição oficial que deve ser por todos observada, independentemente dos interesses dos entes municipais envolvidos ou mesmo dos proprietários de imóveis localizados na zona limítrofe.
4. Competência para definir a divisa intermunicipal
No Estado de São Paulo, compete ao Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC, órgão subordinado à Secretaria de Economia e Planejamento, estudar questões sobre limites estaduais, divisas intermunicipais e distritais, bem como executar a necessária demarcação, implantação e conservação dos marcos divisórios (artigo 28, Inciso II, do Decreto nº 49.568/2005).
Tal atribuição remonta da própria lei que dispõe sobre o quadro territorial, administrativo e judiciário do Estado, a Lei nº 8.092/64:
Artigo 13 - Cabe ao Instituto Geográfico e Geológico da Secretaria da Agricultura:
a) organizar os mapas dos novos municípios, bem como os daqueles que sofreram alteração em seus territórios;
b) proceder a demarcação das divisas fixadas nesta Lei, sempre que necessário.
§ 1º - Na organização dos mapas, serão interpretadas as divisas descritas no anexo nº 2.
§ 2º - Os nomes dos acidentes geográficos fixados por esta Lei, uma vez registrados nas cartas topográficas do Estado serão definitivos, não podendo ser mudados senão por nova Lei.
O Decreto Estadual nº 49.568, de 26 de abril de 2005, que reorganizou a Secretaria de Economia e Planejamento, detalhou melhor as atribuições do IGC perante o quadro territorial-administrativo do Estado, cabendo à Gerência de Apoio Técnico a maior parte das atribuições:
Artigo 32 - A Gerência de Apoio Técnico à "Divisão Administrativa e Territorial" tem as seguintes atribuições:
- propor a divisão administrativa e territorial do Estado;
II - supervisionar a confecção de mapas municipais, distritais e subdistritais;
III - manter cadastro atualizado dos limites, divisas e demarcações;
IV - elaborar e organizar mapas municipais, distritais e subdistritais;
V - proceder à revisão periódica e atualização dos mapas elaborados sob sua responsabilidade;
VI - por meio da Subgerência de Limites, Divisas e Demarcações:
a) realizar estudos específicos com vista à divisão administrativa e territorial;
b) produzir trabalhos relacionados com a divisão territorial;
cproceder à descrição das divisas municipais, distritais e subdistritais, subsidiando a elaboração de lei ou decreto;
dproceder à demarcação de divisas e limites;
e) cooperar com a Comissão de Revisão Administrativa e Territorial do Estado;
VII - por meio da Subgerência de Fornecimento de Documentação Técnica:
a) proceder ao cálculo de área, atendendo a estudos de revisão administrativa e territorial;
b) efetuar vistorias, esclarecendo a localização de elementos geográficos, divisas e glebas;
cfornecer certidões de limites, divisas e demarcações;
d) proceder à localização, em plantas e fotos aéreas, de acidentes geográficos, divisas e glebas;
e) catalogar e arquivar documentos geográficos.
Resumindo, compete ao Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC as seguintes atribuições no tocante ao quadro territorial-administrativo do Estado de São Paulo:
  1. proceder à demarcação de limites e divisas;
  2. proceder à descrição das divisas municipais, distritais e subdistritais;
  3. manter cadastro atualizado dos limites, divisas e demarcações; e
  4. fornecer certidões de limites, divisas e demarcações.

Conclui-se, portanto, que o órgão com competência legal para definir a linha divisória entre os municípios paulistas é o Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC.
5. Descrição da divisa intermunicipal
As descrições perimétricas das divisas intermunicipais de São Paulo, que compõem o anexo nº 2 da Lei nº 8.092/64 e o teor das leis mais recentes de criação de municípios, são um tanto vagas e, conseqüentemente, de pouca acurácia.
A própria lei complementar paulista que dispõe sobre a criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios (Lei Complementar nº 651, de 31 de julho de 1990) prevê, em seu artigo 3º, o aproveitamento de acidentes naturais para a composição da descrição, nem que isso signifique alteração dos limites que já eram aceitos:
§ 2º - As divisas do novo Município serão definidas pelo órgão técnico competente do Estado, preferencialmente acompanhando acidentes naturais ou segundo linhas geodésicas entre pontos bem identificados.
§ 3º - Para aproveitar os acidentes naturais, deslocar-se-á linha divisória até duzentos metros entre o Município desmembrado e o novo, desde que não acarrete a este prejuízo financeiro apreciável.
§ 4º - Deslocando-se a linha divisória, nos termos, do parágrafo anterior, e havendo mais de cem moradores na faixa de terreno acrescida, será realizada consulta plebiscitária posterior à demarcação da linha, cujo resultado não terá influência no plebiscito anteriormente realizado no território já emancipado.
Todos os municípios paulistas possuem descrições de suas divisas que privilegiam os acidentes naturais, mas com grande carência de detalhes, o que torna muito árdua a tarefa de avivamento dos marcos divisórios.
Um exemplo de descrição municipal:
Lei nº 9.330/95, artigo 2º:
III. Município de Jumirim: com sede no distrito de Jumirim e com território deste mesmo distrito, do Município de Tietê, tendo as seguintes divisas:
a) Com o Município de Laranjal Paulista:
Começa no salto do Rio Sorocaba, situado cerca de 3 quilômetros a jusante da Usina do Guedes; desce pelo Rio Sorocaba, até a ponte dos trilhos da FEPASA; daí, segue, em reta, à foz do Córrego da Curva, no Rio Tietê.
b) Com o Município de Tietê:
Começa no Rio Tietê, na foz do Córrego da Curva; sobe pelo Rio Tietê, até a foz do Córrego da Estiva ou do Taquaral, pelo qual sobe até a foz do Córrego Distrital.
c) Com o Município de Cerquilho:
Começa no Córrego da Estiva ou do Taquaral, na foz do Córrego Distrital; sobe por este até sua cabeceira mais meridional, próximo aos trilhos da FEPASA, no espigão Tietê-Sorocaba; alcança na contravertente a cabeceira do Córrego da Vereda, pelo qual desce até sua foz no Rio Sorocaba; desce por este até o salto situado a cerca de 3 quilômetros a jusante da Usina do Guedes, onde tiveram início estas divisas.
O avivamento de marcos de descrições que se utilizam de acidentes naturais pode ser tanto uma atividade muito fácil como bastante penosa. Tudo depende dos acidentes naturais existentes na divisa, se de fácil definição ou não. Seguir os trilhos da Fepasa até uma determinada ponte ou descer um rio até sua foz não causa dificuldade alguma, mas definir a linha que une “a cabeceira mais meridional do córrego Distrital” até a “cabeceira do córrego da Vereda, na contravertente”, não é tarefa que se possa desempenhar fielmente, sem as variações geradas pelo necessário arbítrio do agrimensor.
Aqui, portanto, está o problema. Como definir essa linha divisória nos levantamentos georreferenciados dos imóveis rurais que se encontram na zona limítrofe dos municípios? Como precisar esses dados? A quem compete tal definição? Quais são as responsabilidades decorrentes?
A definição se um imóvel rural se encontra localizado em um ou outro município pode parecer de pouca importância, uma vez que, à primeira vista, a única conseqüência prática seria o desvio do repasse de parcela do ITR arrecadado pela União (de valor muito baixo) para o outro ente político.
Entretanto, com muita propriedade tem salientado o Dr. Roberto Tadeu Teixeira, chefe do setor de cadastro do Incra-SP, em suas palestras sobre o georreferenciamento: “a história muda se nesse imóvel é encontrada uma grande jazida de petróleo ou ali venha a funcionar uma grande fábrica com enorme potencial de receita tributária em favor do município competente”.
6. Retificação da descrição tabular do imóvel localizado na zona limítrofe
As alterações efetivas na Lei dos Registros Públicos pela Lei nº 10.267/2001 gerou a obrigação de georreferenciar todos os imóveis rurais do País, o que está sendo efetivado paulatinamente, em obediência aos prazos carenciais previstos no Decreto nº 4.449/2002.
A acurácia da descrição georreferenciada não se compatibiliza de forma alguma com as descrições antigas que se utilizavam tão-somente da indicação de acidentes naturais ou obstáculos artificiais de fácil visualização, como pontes, estradas e marcos de concreto.
Dessa forma, o levantamento de um imóvel rural localizado na zona limítrofe entre municípios poderá causar uma série de dúvidas, não quanto à sua localização física no planeta (o que, de certa forma, está garantida pelo sistema GPS), mas sim quanto à sua localização jurídico-administrativa, ou seja, poderá o agrimensor não ter certeza a qual município pertence aquele pedaço de terra, principalmente se a divisa intermunicipal daquela zona limítrofe for precária e de difícil definição.
Dois exemplos de descrições de difícil definição (Lei nº 9.330/95, artigo 2º):
VII - Município de Paulistânia, com sede no distrito de Paulistânia e com território deste mesmo distrito, do Município de Agudos, tendo as seguintes divisas:
b) Com o Município de Piratininga:
Começa no divisor Turvo-Alambari, na cabeceira sudoriental da Água do Poço; segue por este divisor até a cabeceira mais ocidental do Córrego Areia Branca ou Espraiado; desce por este até o Ribeirão do Barreiro; segue pelo contraforte fronteiro entre a Água do Faxinal e o Córrego Corredeirinha até o divisor entre as Águas do Ribeirão do Barreiro, à esquerda, e as do Rio Turvo, à direita; segue por este divisor até a cabeceira mais setentrional da Água da Geada.
IX - Município de Trabiju, com sede no distrito de Trabiju e com território deste mesmo distrito, do Município de Boa Esperança do Sul, tendo as seguintes divisas:
c) Com o Município de Dourado:
Começa no Córrego Três Barras, no ponto onde é cortado pela reta que vai da foz do Córrego da Fazenda Nova Cintra, no Córrego da Vargem, à foz do Córrego da Fazenda São José, no Ribeirão do Potreiro; prossegue por esta reta até a foz do Córrego da Fazenda São José, no Ribeirão do Potreiro; desce pelo Ribeirão do Potreiro até a foz do Córrego das Barracas, onde tiveram início estas divisas.
Não há outra forma de definir grande parte dessas divisas sem o prudente arbítrio do agrimensor. O problema é que, pelas conseqüências que poderão advir da definição desses limites, que poderá causar sérios prejuízos a um ente público e, em contrapartida, vantagens significativas ao outro município, há que se definir competências e procedimentos que sejam, ao mesmo tempo, seguros, possíveis e jurídicos.
A retificação da descrição tabular do imóvel, quer pelo sistema do georreferenciamento ou mesmo por outra descrição técnica aceita pela Agrimensura, tem por objetivo aprimorar a especialidade objetiva do imóvel matriculado, conferindo maior confiabilidade ao registro público e gerando a necessária segurança jurídica aos direitos reais ali assentados. Portanto, a segurança jurídica é um dos pilares que devem sustentar a solução para esse impasse.
Por outro lado, as recentes alterações legislativas no tocante ao registro imobiliário têm apontado para a necessária instrumentalidade e celeridade nos procedimentos de correção de falhas e inclusão de informações atualizadas sobre os imóveis. Um dos princípios que informa essa nova onda é o princípio da razoabilidade, mediante o qual as exigências a serem feitas ao interessado para a solução dos problemas envolvendo o registro de seu bem de raiz devem ser viáveis e de fácil execução.
E, por fim, toda solução procedimental que tenha potencialidade para gerar alterações nos direitos de terceiros deve estar inteiramente baseada em aspectos jurídicos que permitam sua utilização, sob pena de responsabilização civil, criminal e administrativa daquele que agiu fora desses parâmetros.
7. O procedimento de retificação
Ao efetuar o levantamento georreferenciado do imóvel rural na zona limítrofe municipal, o agrimensor poderá se deparar com diferentes situações.
A. Imóvel localizado inteiramente em um município, bem próximo da divisa intermunicipal:
Se a matrícula estiver com a informação correta e o agrimensor não tiver dúvida quanto a isso, não haverá problema algum. Basta efetuar o levantamento georreferenciado de acordo com a legislação em vigor.
O Conselho Superior da Magistratura já decidiu que, sendo possível localizar os imóveis e as divisas das circunscrições imobiliárias por mapa oficial, não se pode exigir a participação do IGC para solucionar a questão, bastando para tanto o registrador confrontar a localização do imóvel com a legislação que fixou tais divisas (Ap. Cível nº 268.526, São Paulo-SP, de 5/6/1978).
Se até para o registrador é possível definir juridicamente essa situação, com maior razão poderá o agrimensor solucionar o caso, desde que a descrição legal da divisa intermunicipal seja clara o suficiente para que seu avivamento seja isento de dúvidas.
Entretanto, se a descrição tabular estiver incorreta (declarando que o imóvel está em outro município ou que a sua superfície abrange ambos os territórios), a correção desse dado estará subordinada a uma série de precauções (que serão tratadas mais adiante).
B. Imóvel localizado inteiramente em um município, mas confrontando com o território de outro município:
Como o imóvel faz confrontação com outro município, parte de sua descrição tabular deverá coincidir com a descrição da linha divisora municipal. Como adequar a descrição precária da legislação paulista com a descrição georreferenciada sem risco de prejudicar a descrição oficial?
Neste caso, tanto faz a informação do registro estar equivocada ou correta. Como a nova descrição fixará os pontos delimitadores dos municípios, a potencialidade de danos para qualquer um deles é patente.
Portanto, a elaboração da descrição georreferenciada dessa perimetral também estará subordinada a uma série de precauções (que serão tratadas mais adiante).
C. Imóvel localizado em mais de um município:
Estando a superfície do imóvel abrangendo a área de mais de um ente municipal, a dificuldade para o agrimensor será definir a divisão das duas parcelas, pois o avivamento da divisão intermunicipal nem sempre é possível de forma objetiva, sem a utilização de critérios pessoais arbitrados pelo profissional.
A determinação das duas parcelas é de grande importância, para definir competências e prevenir litígios. Basta o descobrimento de uma grande riqueza mineral nesse imóvel para comprovar essa necessidade.
7.1 Descrição da divisa intermunicipal
Exemplo:
1.  Fazenda Aterradinho – Alambari-SP
2.  Confrontação por 550 metros com o córrego da Divisa ou Dúvida
3.  Imóvel localizado a 4 Km da foz (onde o córrego deságua no rio Sarapuí) e a 6 km da cabeceira
4.  Descrição legal da divisa intermunicipal (Lei nº 7.664/91, artigo 2º):
XXIV - Município de Alambari, com sede no distrito de Alambari e com território desse mesmo distrito, do Município de Itapetininga, tendo as seguintes divisas:
c) Com o Município de Sarapuí:
Começa no Rio Sarapuí, na foz do córrego da Divisa ou Dúvida; sobe por este córrego, até sua cabeceira sudocidental, no divisor, que deixa, à direita, as águas do Rio Alambari, e, à esquerda, as águas do Rio Itapetininga; segue por este divisor até a cabeceira nororiental do córrego da Várzea, onde tiveram início estas divisas.
5.  Conclusão: a descrição da divisa intermunicipal entre Alambari e Sarapuí coincide com a descrição do córrego da Divisa ou Dúvida, ou seja, de fácil locação pelo agrimensor.


Em qualquer uma das hipóteses em que a linha divisora intermunicipal deva ser considerada para a descrição georreferenciada do imóvel, o agrimensor deverá tomar uma série de precauções.
Primeiramente, deverá verificar se a parcela da divisa intermunicipal que afeta o imóvel objeto de seu trabalho é de definição objetiva ou não, isto é, se a descrição legal pode ser locada no terreno sem qualquer dúvida.
Se for esse o caso, compete a ele, profissional da agrimensura devidamente credenciado pelo Incra, efetuar o levantamento georreferenciado e responsabilizar-se por isso. Seu levantamento levará em conta os procedimentos padronizados da Agrimensura e da legislação existente (no caso, as normas do Incra), que comporão a juridicidade de sua nova descrição.
Se a divisa intermunicipal não puder ser definida objetivamente, o agrimensor estará impedido de aviventar a divisa intermunicipal, pelo potencial danoso que representa esse ato aliado à absoluta falta de competência legal para isso.
A solução, neste caso, está em requerer ao Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC uma certidão de limites e divisas intermunicipais com referência ao imóvel levantado. No site do IGC (http://www.igc.sp.gov.br) há indicações de como proceder e um requerimento a ser preenchido "on line":
a) Ao requerimento deverão ser anexadas 3 vias de planta ou croqui do imóvel, devendo conter o máximo de elementos referenciais que possibilitem a transcrição da planta da gleba ou lote para cartas topográficas oficiais.
b) Quando da inexistência de planta ou croqui, o interessado poderá recorrer ao Instituto para a identificação da área objeto da solicitação em documento cartográfico.
c) Em outros casos de solicitação de certidão, será conveniente que o IGC seja previamente consultado.

Figura 7 – Requerimento "on line" do site do IGC.

Conforme prevê a legislação paulista (Decreto nº 49.568/2005), o IGC tem o dever legal de fornecer esse tipo de certidão (artigo 32, VII, “c”), com base nos dados existentes em seu cadastro (artigo 32, III) ou com base em levantamento efetuado (artigo 32, VI, “c” e “d”) ou, ainda, mediante vistorias “in loco” (artigo 32, VII, “b”).
Uma coisa é certa: o IGC não vai efetuar o levantamento georreferenciado de todas as divisas intermunicipais. O ideal, portanto, é o agrimensor efetuar a medição do imóvel de acordo com a técnica usual e apontar ao IGC onde lhe parece estar a linha divisória intermunicipal (com os dados georreferenciados, nos moldes das normas do Incra). Se o IGC confirmar essa nova descrição como divisa oficial entre os municípios, a responsabilidade é integral do órgão público competente, mesmo que, no futuro, venha a ser comprovada eventual falha daquela informação. Neste caso, salvo a existência de má-fé, não caberá responsabilização alguma ao agrimensor, que estava apenas cumprindo seu dever.
Caso o IGC não emita certidão conclusiva ou declare que tal informação somente poderá ser confirmada após levantamento georreferenciado das divisas intermunicipais pelo órgão em data ainda não prevista, não haverá alternativa: prevalece a informação existente no registro.
Assim, mesmo acreditando que o imóvel esteja localizado em outro município, mas não tendo condições seguras para afirmar a localização da linha divisória intermunicipal, o agrimensor deverá consignar tal situação em laudo específico, que será juntado à certidão ou documento do IGC que comprova a inviabilidade momentânea de solucionar o caso, devendo a “localização do imóvel” ser mantida nos termos do registro anterior (na dúvida, prevalece o registro anterior – presunção “juris tantum” do registro imobiliário).
7.2 Desmembramento de imóvel localizado na zona limítrofe
Problema de maior dimensão haverá nos casos de desmembramento de imóvel localizado simultaneamente em mais de um município. Não havendo como precisar a localização da linha limítrofe entre os municípios e não podendo o IGC solucionar o caso, cada imóvel resultante deverá ser declarado como localizado nos dois territórios, prevalecendo a informação registral anterior.
Figura 8 – Imóvel a ser parcelado com divisa intermunicipal incerta.

Até aí não se verifica nenhum prejuízo relevante, havendo inclusive previsão legal para assim proceder. Entretanto, essa prática, inicialmente sem relevância, poderá resultar em situações esdrúxulas, principalmente após sucessivos desmembramentos.
Devido à incerteza quanto à localização da divisa intermunicipal, cada nova parcela será descrita como se estivesse localizada em ambos os municípios, com o transporte para a nova matrícula dos dados do imóvel primitivo, gerando informações totalmente equivocadas. 
Figura 9 – Situação esdrúxula provocada pela incerteza legal.

Enquanto as divisas intermunicipais não forem fisicamente demarcadas, de forma clara e inconteste, o problema continuará a existir. Até hoje, tal indefinição não causou muita polêmica, mesmo porque a grande parte dos imóveis localizados nessa zona limítrofe está com descrições tabulares precárias quando não incorretas. O problema começará a ser percebido agora, com o cumprimento da lei do georreferenciamento, que definirá a posição exata dos imóveis rurais no território nacional, mas poderá causar impactos negativos quanto à definição imprecisa de suas competências administrativas.
8. Participação dos Municípios no procedimento de retificação
Outra questão que merece exame é a validade de participação dos Municípios limítrofes como anuentes no procedimento de retificação da descrição de imóvel rural em que haja modificação de competências ou que necessite da descrição pormenorizada da linha divisória intermunicipal.
Dificilmente os Municípios envolvidos estarão aptos para definir com precisão as divisas intermunicipais. Além disso, eventual discordância entre os entes políticos envolvidos sobre a localização da divisa teria o condão de obstar a retificação pretendida pelo titular do imóvel rural? E, por outro lado, a mútua concordância teria o poder de definir essa linha, mesmo equivocada?
O procedimento de retificação de registro imobiliário, tanto pelo rito do artigo 213 da LRP como pelas regras do Decreto nº 4.449/2002, privilegiam a participação daqueles que possam ser afetados pela alteração pretendida no registro público.
Em decorrência, exige-se a anuência dos confrontantes, quer sejam titulares do imóvel confinante ou meramente seus detentores.
Se algum deles apresentar impugnação fundamentada e não se conciliar com o requerente, a fase extrajudicial é finalizada, cabendo apenas ao Judiciário a solução do problema.
A impugnação deve levar em conta se a descrição do imóvel objeto da retificação prejudica ou não o direito dos imóveis confrontantes. No caso das divisas intermunicipais, a discussão é outra. A questão não se encontra na concordância ou não com a descrição das perimetrais do imóvel, mas sim a qual circunscrição municipal pertence o referido bem de raiz.
Os trabalhos técnicos estão perfeitos, a superfície declarada na planta coincide com a área real do imóvel e não prejudica os demais imóveis lindeiros. O único problema verificado é a indefinição de qual município tem competência administrativa sobre aquele pedaço de terra. Ou seja, a única descrição perimetral falha é a divisa intermunicipal, cuja competência é unicamente do Estado e independe da participação dos titulares dos imóveis por ela afetados.
Outro ponto que merece destaque é a quantificação da importância dessa informação para o registro público.
Em síntese, compete ao registro imobiliário o assento dos direitos reais relativos aos bens imóveis, conferindo-lhes autenticidade, segurança jurídica, eficácia e publicidade.
Para que essas metas sejam efetivas, o registro imobiliário é informado por vários princípios, dentre eles o da especialidade objetiva, cuja importância tem sido ampliada, principalmente após o advento da legislação do georreferenciamento.
A perfeita descrição do imóvel, em si, não representa um direito real, mas tem nítida influência nos direitos reais a ele relativos, podendo uma descrição viciada gerar até mesmo a perda de direitos que o registro público tem por missão assegurar.
O georreferenciamento apresenta-se como uma grande promessa de solução nesse caso, uma vez que as descrições dos imóveis serão de grande acurácia, dirimindo dúvidas e prevenindo conflitos.
As demais informações referentes aos imóveis seriam de tão grande importância para que o registro imobiliário se subordinasse à sua exata definição? Quais dados interessam ao registro e quais dados são apenas de interesse do cadastro? Até onde vai a competência do registro imobiliário nesse assunto?
Quanto mais informação sobre o imóvel houver na matrícula, melhor. Mas até que ponto o registro deve ficar preso à necessidade de se buscar tais dados? O princípio da concentração, bastante defendido no Rio Grande do Sul, serve para colaborar com o registro (permitindo o ingresso de variadas informações) ou seria um ônus adicional que poderia atravancar o sistema (exigindo o ingresso dessas informações)?
A questão é definir quais dados são de interesse do registro e quais dados são de interesse do cadastro.
  1. dados de interesse e responsabilidade exclusiva do registro imobiliário: direitos e ônus reais; titularidade; valor do negócio; vigência; etc.
  2. dados de interesse e responsabilidade exclusiva do cadastro público (Incra ou Município): destinação econômica do imóvel; valor do imóvel; tipo e capacidade produtiva do solo; tipo de construção; quantidade de moradores; distância do centro urbano; etc.
  3. dados de interesse tanto do registro imobiliário como do cadastro: especialidade objetiva, especialidade subjetiva, interconexão das informações, etc.

A definição das divisas intermunicipais é de interesse direto dos Municípios envolvidos, sendo um mero dado cadastral e não registral. Sua definição nada tem a ver com os direitos reais imobiliários e a declaração na matrícula em qual município se localiza o imóvel não tem o condão de alterar competências. Esse dado, na matrícula, é meramente indicativo, não gerando direitos nem deveres a quem quer que seja.
Como o dado não é de registro, sua definição não é de competência do registrador, mas sim do Estado, que possui competência legal para definir a divisa intermunicipal. Portanto, se o IGC certificar que determinado imóvel rural está localizado em outro município, não compete ao registrador questionar tal certidão, sob a alegação de que a descrição da divisa intermunicipal existente na lei não está georreferenciada o que, em tese, poderia impedir tal conclusão. A certidão do IGC tem fé pública, somente podendo ser impugnada por aqueles que demonstrem legitimidade e interesse.
Como esse dado cadastral é de extrema importância e a definição do IGC pode causar litígio entre os entes municipais, conclui-se pela necessidade de participação dos Municípios em todos os procedimentos extrajudiciais de retificação de registro envolvendo imóveis localizados na zona limítrofe, exceto nos casos em que a descrição legal for inequívoca e não resulte em alteração do dado constante do registro.
Conclusão
Diante desse quadro, para efetivar a retificação da descrição tabular de imóvel rural localizado na zona limítrofe intermunicipal, há as seguintes possibilidades:
  1. definição da linha pelo próprio agrimensor;
  2. anuência expressa dos Municípios;
  3. certidão do IGC; e
  4. manutenção da informação do registro anterior.

Sendo clara e inconteste a divisa intermunicipal que afeta o imóvel retificando e não resultando em alteração de competência municipal, compete ao próprio agrimensor defini-la unilateralmente, assumindo normalmente as responsabilidades decor­rentes de sua atividade profissional como ocorre em relação aos demais dados apresentados em seu trabalho.
Apesar de clara e inconteste a divisa intermunicipal, se a nova descrição resultar na alteração de competência municipal (alterando ou não a circunscrição imobiliária), compete ao próprio agrimensor defini-la, mas com a anuência dos 2 entes municipais.
Havendo divergência entre os entes municipais ou não tendo o agrimensor condições de aviventar os marcos divisórios em decorrência da precariedade da descrição legal, a definição da divisa intermunicipal deverá ser efetivada pelo IGC.
Com a certidão do IGC, órgão competente para a definição das divisas intermunicipais, a retificação da competência municipal poderá ser feita se houver concordância dos municípios envolvidos sobre esse parecer técnico. Não havendo consenso, apesar de o dado discutido ser acessório para o registro, sua solução deverá ser dada pelo Poder Judiciário, tendo em vista a potencialidade de dano da alteração ou não dessa informação na matrícula.
A simples anuência dos municípios confrontantes com determinada descrição georreferenciada de divisa intermunicipal somente poderá gerar a retificação se estiver acompanhada de laudo do agrimensor atestando que a referida linha limítrofe pôde ser levantada com segurança nos termos da descrição legal. Sendo precária a descrição legal no que se refere ao imóvel em epígrafe, o avivamento dessa linha deve contar com a homologação do IGC, em virtude de sua competência legal.
Por fim, não havendo meios de definir com a necessária segurança jurídica a exata localização da divisa intermunicipal, com manifestação do IGC nesse sentido, o princípio da presunção relativa do registro público deve prevalecer, ou seja, mantém-se a mesma informação do registro anterior até que haja uma solução segura e jurídica para o caso.