quarta-feira, 25 de maio de 2011

A História de "Seu João Alcides" (Legislação do Georreferenciamento)


Vídeo sobre a história de Seu João Alcides, da Comarca de Conchas, que foi por mim apresentado no "GeoAraraquara" (10 de julho de 2004) e em vários outros congressos, simpósios e palestras sobre georreferenciamento de imóveis rurais.
O tema aqui tratado é o impacto gerado pela nova legislação sobre a comunidade rural quando do início da vigência da legislação do georreferenciamento. Esclareço que se trata de uma situação anterior ao Decreto nº 5.570/2005, que solucionou quase todo o problema discutido nesse vídeo.
O impacto gerado pela divulgação do vídeo ao público especializado e aos órgãos governamentais colaborou muito com para a edição do Decreto nº 5.570/2005. Por esse motivo, nossa homenagem ao "Seu João Alcides", que, mesmo sem saber, conseguiu "fazer a diferença".
Seguem abaixo:
1) a narração completa do vídeo; e
2) importante esclarecimento final.


1. A História de Seu João Alcides
Esta é a história de Seu João, um velho produtor rural de nossa comarca de Conchas, um senhor de 87 anos, batalhador, proprietário de um sítio de 18 alqueires na zona rural de Pereiras, comarca de Conchas.
Sempre deu duro na vida, retirando seu sustento da terra. Comprou seu sítio à vista, em 1950, dinheirinho contado na mão do vendedor. Guarda até hoje com muito carinho a escritura devidamente registrada numa velha, mas bem cuidada pasta de plástico. Ali está seu título, o documento que comprova ser ele um homem de posses. São as escrituras de suas terras feitas pelo tabelião João Herculano de Almeida, falecido há muitas décadas. Dentre os guardados com primor e orgulho, está o recibo manuscrito do então ofício judicial, que registrou seu sítio no livro 3A (transcrição 1.019).
Entretanto, a descrição de seu sítio é por demais falha e não define a forma nem a área exata do imóvel. Mas essa era a forma usual da época para descrever os imóveis rurais:
"Um sítio localizado na Água Choca, município de Pereiras, com uma área de mais ou menos 300 braças quadradas, dividindo com Fulano, Sicrano e Beltrano."
As descrições vagas e lacônicas dos registros antigos não foram assim feitas por culpa dos proprietários. Era a regra vigente e por todos aceita. Era o que o Estado fazia e, com base nela, prometia garantir a eles a necessária segurança jurídica.
Com o passar do tempo, houve um progressivo (e correto) rigor na interpretação dos princípios registrais, em especial do princípio da especialidade objetiva. No entanto, apenas nós, registradores, sabemos disso. O Seu João, orgulhoso de seu título registrado e muito bem conservado, nunca ouviu falar nisso…
Por volta do final da década de 1960, esse pequeno proprietário rural, que é um leigo, teve parcela de sua terra desapropriada pelo Estado para passagem de uma rodovia. Um pedaço pequeno, num canto, tanto que ele nem fez questão de discutir os valores, aceitando de bom grado a desapropriação amigável. Afinal, a estrada traria progresso para suas terras.
No passado nunca se fazia descrição de remanescente. Resultado: com a perda de parcela de área, seu imóvel, cuja transcrição já estava mal descrita, ficou com a especialidade objetiva e disponibilidade qualitativa ainda mais comprometidas.
“Impossível abrir matrícula, Seu João. Vai precisar pedir pro Juiz”, disse-lhe o cartorário há alguns anos.
Desesperado para emitir cédulas hipotecárias e dar continuidade à sua lavoura, Seu João, com muita dificuldade, paga engenheiro, paga advogado, com dinheiro contado moeda por moeda. O levantamento do engenheiro é lento, demora algumas semanas. Depois disso, o processo é iniciado e tramita muito mais lentamente ainda. No meio do caminho, leis, decretos, portarias do Incra, documentos de que Seu João nunca ouviu falar – bem como e a bem da verdade nem seu advogado.
Antes da sentença, o juiz, cauteloso, remete o processo para manifestação do oficial de registro. Ciente da nova lei do georreferenciamento, o oficial faz seu parecer em teor técnico e de um primor jurídico inigualável. O juiz acata. Decisão interlocutória:
“Prazo para georreferenciar o imóvel sob pena de extinção do feito”.
Seu João não teve alternativa: desistiu da ação por insuficiência financeira para dar prosseguimento ao processo.
Em face disso, pergunto-lhes: Como exigir o georreferenciamento nesse caso? E o princípio da razoabilidade? E o direito do proprietário de dispor de suas terras? E a gratuidade que a lei do georreferenciamento lhe garante?
Como ainda não houve a regulamentação sobre a gratuidade do georreferenciamento, Seu João perdeu tudo. Perdeu o dinheiro pago ao engenheiro, cujo serviço não serviu de nada; perdeu o dinheiro pago ao advogado, cujos honorários lhe são devidos em pagamento aos serviços prestados; perdeu o financiamento que o Banespa lhe havia prometido mediante emissão de cédula rural hipotecária, uma vez que não há como registrar a hipoteca sem abrir matrícula.
Conclusão: criaram um sistema novo para dar mais segurança jurídica ao proprietário rural, para ajudar o produtor rural, para ajudar Seu João, para trazer progresso à suas terras… Louvável iniciativa pública!
Mas, em virtude disso, Seu João está perdendo tudo! Seu João está passando fome!
Desesperado, Seu João encontra alguém que quer comprar suas terras – sua salvação!
Mas não pode vendê-las! O tabelião sabe que não há como descrever o imóvel na escritura nem há como registrá-la. Propõe, então, um contrato de gaveta –paliativo, mas todos fazem–, porém o interessado pelas terras se assusta e vai embora. Seu João perde o negócio, perde de novo; continua a passar fome…
Esta é a história de Seu João Alcides, da comarca de Conchas. Mas também é a história de muitos outros Joãos de nosso imenso Brasil, pessoas honestas, trabalhadoras, de vida sofrida, que necessitam e aguardam a compreensão do Estado para uma vida melhor.
Seu João, essa é a sua história. Seu João, essa é a verdadeira história do Brasil!!!



2. Esclarecimento Final: A Verdadeira História
A história de Seu João foi contada em todo o Brasil. Por ser uma história que se encaixa perfeitamente na difícil situação de vários brasileiros por aí afora, teve que ser repetida à exaustão, pois a realidade comove, a realidade choca.
O registro imobiliário é um repertório de importantes informações sobre a comunidade local. Para conhecer uma boa parte da história de uma localidade, basta pesquisar o conteúdo dos registros públicos, em especial as matrículas e seus assentos modificadores. Praticamente, tudo passa pelo registro, e a história se perpetua, fica gravada para sempre nos arquivos do cartório.
Ano e meio após a produção desse vídeo, chegou no Registro de Conchas um documento para ser averbado numa matrícula. Uma certidão de óbito novinha, extraída há poucos dias, que noticiava o falecimento de um cidadão da comarca. Seria um documento comum, como qualquer outro que chega diariamente ao serviço imobiliário para completar as informações do registro, se não fosse um porém:
A certidão comunicava o falecimento do nosso velho amigo Seu João Alcides.
Mas sua história não teve um final tão trágico como parece. Sua história, contada aos quatro cantos do país, não foi exatamente como narrada.
Na verdade, ao término da ação judicial de retificação de registro, o processo não foi extinto pelo não-cumprimento da lei do georreferenciamento. Não foi porque o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Registro Imobiliário de Conchas trabalham com um mesmo fim, todos objetivam a Justiça do caso concreto. A lei, da forma como estava (antes do Decreto nº 5.570/2005), era injusta e merecia flexibilização. E assim foi decidido.
Seu título judicial resultou numa nova matrícula para seu imóvel, totalmente saneada de velhos vícios e, logo em seguida, Seu João efetuou a doação de seu sítio a seus dois únicos filhos, reservando a si o usufruto vitalício do imóvel, uma vez que não possuía nenhum outro bem.
Seus filhos obtiveram acesso ao crédito rural e construíram uma pequena granja. Os negócios vão bem e a família – Seu João, os filhos, as noras e os cinco netos – conheceu finalmente a fartura sobre a mesa. A certidão de óbito apresentada era para extinguir o usufruto. Junto com ela, uma outra cédula de crédito rural hipotecária, ou seja, um outro financiamento, novos negócios, mais progresso para a família.
Seu João cumpriu seu papel social entre nós. Deixou filhos e netos, bem encaminhados. Deixou seu patrimônio previamente partilhado. Deixou tudo bem documentado, como sempre gostou de fazer. Deixou, enfim, muitas saudades!

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