sábado, 15 de maio de 2010

As Precárias Descrições do Passado

A segurança jurídica é o elemento essencial do sistema registral imobiliário e, para garanti-la, há uma série de princípios e mecanismos de controle de ingresso de títulos, que são utilizados quando da qualificação registral.
Um princípio que se destaca é o da especialidade objetiva, pelo qual “toda inscrição deve recair sobre um objeto precisamente individuado”.[1] Essa individuação é obtida “pela menção dos requisitos apontados, notadamente de seus característicos e confrontações e seu número de inscrição atual, e, portanto, legalmente exigida em todos os atos de mutação jurídico-real, sejam particulares, sejam judiciais”.[2]
As descrições dos imóveis efetuadas no passado são muito precárias e não garantem a segurança jurídica que se espera, sendo esta uma das maiores críticas feitas ao registro público imobiliário, como se isso tivesse ocorrido por culpa do registrador.
Essas falhas ocorreram por uma série de motivos, nenhum dos quais por culpa ou responsabilidade do registrador, pois nunca lhe coube a atribuição de descrever imóveis, mas apenas a de transcrever, “verbo ad verbum”, a descrição constante do título aquisitivo.
Tais descrições remontam à época colonial, quando o Brasil possuía uma grande extensão de terras livres para serem colonizadas, havendo incentivo para o desbravamento, para as bandeiras, para a colonização do interior.
A falta de precisão na descrição dos imóveis estava relacionada com o modelo de exploração da Colônia. No início, as concessões de terras eram imensas, existia um modelo extrativista que se baseava no latifúndio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial. Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado, com uma intrínseca necessidade de mobilidade – o que acarretava uma flexibilização dos limites da posse ou propriedade. A efetiva posse tinha essa característica dinâmica, expandia-se de um lado para o outro. Não admira que, embora houvesse à disposição tecnologia geodésica para a realização de uma adequada demarcação das terras, isso não se fará na Colônia.[3]
Além disso, essas descrições não eram absurdas como se costuma dizer. Elas cumpriram muito bem seu papel de declarar a extensão do direito de propriedade naquele momento histórico, não gerando dúvidas ou conflitos pelo fato de sua aparente precariedade.
O registro cumpriu satisfatoriamente sua missão, independentemente da existência de um suporte cadastral. Aliás essa é a tese de Filadelfo Azevedo. […] O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situações jurídicas em seu lugar. É preciso enxergar devidamente a importância relativa do cadastro para não cairmos na tentadora tese de que o cadastro é condição essencial para o registro... Tanto não é assim que sobrevivemos à sua falta por longo tempo. E o advento da Lei 10.267/2001, se de um lado deve ser saudada como um importante avanço, de outro não pode se constituir em embaraço à livre circulação dos bens, impondo obstáculos à consagração e assinalação de direitos.[4]
No entanto, com o constante aumento populacional, a terra foi se tornando cada vez mais rara e onerosa, surgindo, a partir de então, os problemas sociais a ela relacionados, destacando-se a falta de moradia, os conflitos agrários e a especulação no mercado imobiliário.
Diante desse novo panorama, as antigas descrições passam a não mais garantir, com a devida segurança, o direito de propriedade regularmente constituído, transformando-se em potencialidade danosa tanto para seus titulares como para a sociedade em geral. A sociedade situa-se no pólo passivo do problema, pois, não raras vezes, a imperfeição da descrição imobiliária é utilizada pelo seu titular com o intuito espúrio de avançar os limites reais de sua propriedade imobiliária sobre a propriedade alheia.
A propósito, diz o Dr. José Roberto Ferreira Gouvêa, 1º Curador de Registros Públicos da Capital: “O subscritor deste permite-se observar que esta não é a primeira vez - e infelizmente não será a última - em que alguém pretende, através de registro imobiliário antigo, com descrição absolutamente ineficiente, tornar-se proprietário de área certa e identificável. O juiz Narciso Orlandi Neto rejeitou pedido do titular do registro imobiliário do ‘Sítio do Ibirapuera’ que, há alguns anos, se dizia senhor de tudo o que estivesse nos bairros de Santo Amaro, Vila Mariana, Ibirapuera e outros mais”.
No mesmo sentido, observa o MM. Juiz Aroldo Mendes Viotti, na r. sentença de que se recorre: “Cuida-se, portanto, de um daqueles registros que, apesar de traduzirem o retrato de uma época, mostram-se inteiramente desprovidos de elementos que os permitam localizar geograficamente. Trazendo apenas referência à área, em alqueires, e ‘confrontações não mais identificáveis na época presente, registros de tal natureza, em significativa expressão, como que “flutuam” geograficamente, não mais sendo localizáveis no solo em atenção à especialidade”.
Esses registros flutuantes, amoldáveis a diversas realidades geográficas, acomodando em contornos obscuros fenômenos geodésicos distintos, afrontam a base imobiliária que, mediante a especialidade objetiva, se encontra na raiz da segurança jurídica - objeto teleológico do registro predial.[5]

[1]    Afrânio de Carvalho, Registro de imóveis, 2001, p. 243.
[2]    Ibidem, p. 246.
[3]    Sérgio JACOMINO, em entrevista concedida a Fátima Rodrigo em 5/11/2004 (Boletim Eletrônico do IRIB nº 1824, de 28/6/2005).
[4]    Ibidem.
[5]    TJSP – CGJ, Decisão nº 170/86, de 20/10/1986, relator: juiz Ricardo Henry Marques Dip.

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