sexta-feira, 14 de maio de 2010

Margens dos Rios Públicos e os Terrenos Reservados


Uma outra questão envolvendo os rios públicos, além da confrontação, é a definição da existência e da titularidade dos terrenos reservados, cuja divergência doutrinária se estende há várias décadas, mas com poucas manifestações jurisprudenciais, haja vista a pouca repercussão prática que havia diante das precárias descrições imobiliárias que eram aceitas no passado. Hoje, no entanto, com um maior rigor na fiscalização do cumprimento do princípio da especialidade objetiva e com a vigência da legislação do georreferenciamento, chegou o momento de fincar mais esse marco jurídico conceitual.

Pelo Código de Águas, de vigência reconhecida pelos tribunais, as margens dos rios públicos são de propriedade estatal, bens dominicais da União ou do Estado, dependendo a quem pertença o próprio rio.
Código de Águas — Decreto nº 24.643/34:
Art. 10 - O álveo será público de uso comum ou dominical conforme a propriedade das respectivas águas e será particular no caso das águas comuns ou das águas particulares.

Art. 11 - São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular:

1 - os terrenos de marinha;
2 - os terrenos reservados nas margens das correntes públicas de uso comum, bem como dos canais, lagos e lagoas da mesma espécie. Salvo quanto às correntes que, não sendo navegáveis nem flutuáveis, concorrem apenas para formar outras simplesmente flutuáveis, e não navegáveis.
Art. 13 - Constituem terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até 33 metros para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega a preamar média. Este ponto refere-se ao estado do lugar no tempo da execução do artigo 51, parágrafo 14, da Lei de 15 de novembro de 1831.
Art. 14 - Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até à distância de 15 metros para a parte da terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias.
Portanto, confrontando o imóvel com um rio público, o levantamento técnico de seus vértices deverá respeitar a faixa de propriedade pública, ou seja, estar distante 15 metros do ponto médio das enchentes ordinárias (ou 33 metros da preamar média de 1831, se o rio estiver ao alcance das marés).

Entretanto, o caput do artigo 11 do Código de Águas traz uma importante regra:
Art. 11 - São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular.
No Brasil, o único título legítimo que constitui propriedade sobre bem imóvel é o registro público imobiliário, atualmente representado pela matrícula. Assim, se a descrição tabular do imóvel fizer menção ao rio público como confrontante, sem ressalvar a faixa de terreno reservado, esta é de propriedade particular, conforme estabelece o decreto de 1934.

As margens dos rios navegáveis são, em regra, de domínio público. No entanto, se o particular possui título legítimo de propriedade abrangendo essas áreas, tais prolongamentos das margens não são terrenos reservados, mas sim terras particulares lindeiras ao curso d’água de domínio público.

Em 2004, no Recurso Especial nº 443.370 que tratava desse assunto, a Ministra do STJ Eliana Calmon, atuando como relatora, destacou que a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo não se baseou no parecer da Capitania dos Portos, para concluir pela indenização das terras marginais ao rio Cabuçu de Cima, mas sim no fato de os proprietários possuírem título legítimo, o que afasta a aplicação da Súmula 479 do STF, segundo a qual as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização.

A Ministra entendeu que os expropriados, detentores de título legítimo, tinham o direito legal de propriedade, cabendo ao Estado, que expropriou a área por intermédio do Departamento de Águas e Energia do Estado de São Paulo (DAEE), arcar com as verbas indenizatórias.

Esse mesmo entendimento já havia prevalecido no RE 10.042/SP, julgado em 14/11/1950, que recebeu a seguinte ementa: “pertencem ao domínio público as margens dos rios públicos, salvo prova de concessão emanada pelo poder público.”

Em outro Recurso Especial (RE 637.726-SP, julgado em 3/3/2005), a 1ª Turma do STJ manteve o mesmo posicionamento jurídico, enfatizando expressamente um importante trecho do acórdão do tribunal paulista:
Destaque-se, ademais, que, ainda que demonstrada a navegabilidade do rio Cabuçu de Cima, a indenização das áreas marginais não poderia ser afastada, porquanto, segundo afirmou o juízo de primeiro grau, os expropriados comprovaram a titularidade do imóvel através da matrícula nº 106.283, proveniente do 15º Cartório de Registro de Imóveis.
Essa recente decisão demonstra claramente que, havendo na matrícula clara menção de que a propriedade imobiliária atinge as margens do rio, não há que se falar em terreno reservado, pois o próprio Código de Águas excetua de seu conceito as faixas lindeiras tituladas em nome do particular. Portanto, para definir a titularidade da margem do rio navegável, basta observar se a descrição tabular exclui ou não essas áreas. A simples menção de o imóvel confrontar com o rio ou a simples indicação de o rio estar no interior do imóvel são evidências claras da inexistência dos terrenos reservados

Entretanto, se tal margem estiver com clara destinação pública, independentemente de desapropriação ou mesmo comunicação oficial, mesmo havendo título de propriedade em favor do particular, todo o espaço abrangido por essa utilização pública passou automaticamente ao patrimônio estatal, da mesma forma que ocorre com as estradas que cortaram o imóvel de forma arbitrária.

Isso pode ocorrer no seguinte exemplo: o poder público constrói e mantém um pequeno ancoradouro às margens de um rio piscoso, como forma de fomento à atividade pesqueira da região. Com a destinação pública desse espaço, o proprietário do imóvel ribeirinho, mesmo possuindo título claro em seu favor, perde o domínio dessa área, sobrando-lhe apenas o direito de ajuizar uma ação de desapropriação indireta em face do Estado, para requerer a devida indenização.

Tal situação costuma também ocorrer com as barragens para usinas hidrelétricas, em que existe um decreto expropriatório atingindo todo o solo que esteja situado abaixo de uma determinada cota, às margens do curso d'água e dos afluentes formadores dessa represa.

Nestes casos, independentemente de ter ou não havido indenização, a área abrangida pelo decreto expropriatório é pública e deve ser excluída do levantamento técnico do imóvel privado. Nos casos das represas, em especial, a anuência da empresa concessionária é fundamental para viabilizar a retificação da descrição do imóvel na matrícula.

Outro aspecto importante é a desvantagem de o Estado colocar-se como titular dessas margens estendidas. Enquanto estiverem sobre o domínio do proprietário do imóvel, este é objetivamente responsável pela preservação dessa área que, pela legislação ambiental, está inserida na área de preservação permanente (APP).

A APP possui dimensão variável conforme a largura do rio, mas, como sua faixa mínima é de 30 metros, todos os terrenos reservados estão sob proteção ambiental. Considerando pública essa margem, além de o Estado não ter condições de fiscalizar essas áreas de proteção ambiental, perderá ele o melhor tipo de fiscal, o proprietário rural que, além de deixar de ser responsável pela sua conservação, também perde o poder-dever de fiscalização, uma vez que qualquer atitude que venha a tomar contra eventuais agressores deixará de caracterizar o “desforço imediato” e poderá até tipificar a conduta do “exercício arbitrário das próprias razões”.


Diante de tudo o que foi explanado, convém distinguir o aspecto teórico do prático. Apesar de a simples descrição do imóvel ser elemento suficiente para determinar a inexistência dessa faixa pública denominada "terreno reservado", existe a possibilidade de a Fazenda Pública contestar a exatidão desse registro (em muitos casos, terá plena razão), o que poderá tornar um simples e célere procedimento extrajudicial de retificação de registro num complexo e interminável processo judicial. Além disso, essa faixa de 15 metros não tem nenhuma utilidade prática para o particular além de um relativo acesso às águas do rio (ali é uma APP), acesso este que não se modificará em nada pelo reconhecimento da titularidade pública dessa faixa e da sua exclusão da descrição tabular do imóvel.

Por fim, cumpre esclarecer que, mesmo que o proprietário tome a iniciativa de retificar a descrição tabular de seu imóvel, excluindo a área pública que, em tese, seria de sua titularidade, ele não perde a titularidade dessa área, nem seu direito de ação em face do Estado para exigir indenização. No entanto, esse direito de exigir indenização somente passa a existir (e a contagem do prazo prescricional também) se o Estado apossar-se de fato dessa faixa de 15 metros, não tendo a simples descrição do imóvel o condão de caracterizar a invasão estatal nem a renúncia da propriedade daquela área. A nova descrição tabular do imóvel omitiu tal área por força do ordenamento jurídico que impede a inclusão de área pública em área privada, não tendo essa “providência compulsória” o caráter de renúncia aos direitos garantidos pela legislação pátria. Além disso, a antiga descrição tabular, existente na matrícula ou transcrição anterior, continuará escriturada no registro imobiliário, como uma prova perpétua dotada de fé pública “juris tantum” da existência desse título de propriedade que inclui a margem do rio, podendo, a qualquer tempo, requerer sua inclusão na descrição tabular de seu imóvel (com anuência específica da Fazenda Pública) ou exigir a indenização diante do efetivo apossamento da área pelo Poder Público.

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3 comentários:

  1. Afinal, todos os rios podem ser frequentados por qualquer cidadão, uma vez que são públicos?

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  2. Atrás da minha propriedade passa um rio navegável e às suas margens, uma imensa mata de igapó, vem sendo lentamente destruída pela extração ilegal de madeira, corte esporádico de açaizeiros (árvore do açaí) e caça indiscriminada. A mata ciliar se entende à 200 metros distante da margem. Eu tenho direito-dever de questionar na justiça essa depredação ou é melhor ficar de braços cruzados assistindo a devastação?

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  3. Eu, voce ou nos, cidadaos Brasileiros, temos o direito caso queiramos, de por exemplo acampar as margens de um rio, represado, adjacentes a propriedades particulares ou publicas,dentro do territorio Brasileiro:

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